Servicios
Descargas
Buscar
Idiomas
P. Completa
Entre o Passado e o Presente: Contribuições Para Compreensão da Desinformação na Contemporaneidade a Partir de uma Perspectiva Historicizante
Diego de Deus
Diego de Deus
Entre o Passado e o Presente: Contribuições Para Compreensão da Desinformação na Contemporaneidade a Partir de uma Perspectiva Historicizante
Between the Past and the Present: Contributions to Understanding Disinformation in Contemporary Times From a Historicizing Perspective
Entre el Pasado y el Presente: Aportes para Comprender la Desinformación en la Época Contemporánea Desde una Perspectiva Historizante
Revista Comunicando, vol. 12, núm. 2, e023018, 2023
Associação Portuguesa de Ciências da Comunicação
resúmenes
secciones
referencias
imágenes

Resumo: O trabalho objetiva-se em analisar os diferentes elementos historicizantes que caracterizavam a desinformação no passado, sobretudo a partir do século VI, em relação aos desdobramentos e características contemporâneas do fenômeno. Realizou-se uma revisão bibliográfica e dividiu-se o artigo em três sessões: no primeiro momento, busca-se contextualizar o entendimento do fenômeno na Sociedade da Desinformação (Marshall, 2017); depois, discute-se exemplos e utilizações estratégicas da informação e comunicação com o objetivo em desinformar na perspectiva histórica, com alguns exemplos entre os séculos VI e XIX, de como as informações falsas circulavam e eram capazes de também influenciar a opinião pública no passado e, por fim, delimita-se caracterizações que possibilitam diferenciar e atribuir a desinformação na contemporaneidade. Conclui-se que a desinformação pode ser atrelada à própria vida em sociedade, enquanto um campo de relações sociais e comunicacionais, mas no cenário contemporâneo, está calcada em uma lógica de circulação e de efeitos de sentido impulsionada pelas redes sociais digitais. As diversas especificidades tecnológicas, econômicas, sociais, políticas e culturais da contemporaneidade existentes sobre a desinformação também são importantes fatores que permitem analisar o fenômeno como algo endêmico da sociedade atual.

Palavras-chave: Desinformação,Sociedade da Desinformação,Contemporaneidade,Abordagem Historicizante.

Abstract: The aim of the work is to analyze the different historicizing elements that characterized disinformation in the past, especially from the 6th century onwards, in relation to the contemporary developments and characteristics of the phenomenon. A bibliographical review was carried out and the article was divided into three sessions: firstly, we sought to contextualize the understanding of the phenomenon in the Disinformation Society (Marshall, 2017); then, examples and strategic uses of information and communication are discussed with the aim of disinforming from a historical perspective, with some examples between the 6th and 19th centuries, of how false information circulated and was also capable of influencing public opinion in the past and , finally, characterizations are defined that make it possible to differentiate and attribute misinformation in contemporary times. It is concluded that misinformation can be attributed to life in society itself as a field of social and communicational relations, but in the contemporary scenario, it is based on a logic of circulation and meaning effects driven by digital social networks. The various technological, economic, social, political and cultural specificities of contemporary disinformation that exist regarding disinformation are also important factors that allow us to analyze the phenomenon as something endemic to today's society.

Keywords: Disinformation, Disinformation Society, Contemporaneity, Historicizing Approach.

Resumen: El objetivo del trabajo es analizar los diferentes elementos historizantes que caracterizaron la desinformación en el pasado, especialmente a partir del siglo VI, en relación con los desarrollos y características contemporáneas del fenómeno. Se realizó una revisión bibliográfica y el artículo se dividió en tres sesiones: en primer lugar, se buscó contextualizar la comprensión del fenómeno en la Sociedad de la Desinformación (Marshall, 2017); luego, se discuten ejemplos y usos estratégicos de la información y la comunicación con el objetivo de desinformar desde una perspectiva histórica, con algunos ejemplos entre los siglos VI y XIX, de cómo la información falsa circuló y también fue capaz de influir en la opinión pública en el pasado y, finalmente, se definen caracterizaciones que permiten diferenciar y atribuir la desinformación en la época contemporánea. Se concluye que la desinformación puede atribuirse a la vida en sociedad misma como campo de relaciones sociales y comunicacionales, pero en el escenario contemporáneo se sustenta en una lógica de circulación y efectos de significado impulsada por las redes sociales digitales. Las diversas especificidades tecnológicas, económicas, sociales, políticas y culturales de la desinformación contemporánea que existen respecto de la desinformación también son factores importantes que permiten analizar el fenómeno como algo endémico de la sociedad actual.

Palabras clave: Desinformación, Sociedad de La Desinformación, Tiempo Contemporáneo, Enfoque Historizante.

Carátula del artículo

Varia

Entre o Passado e o Presente: Contribuições Para Compreensão da Desinformação na Contemporaneidade a Partir de uma Perspectiva Historicizante

Between the Past and the Present: Contributions to Understanding Disinformation in Contemporary Times From a Historicizing Perspective

Entre el Pasado y el Presente: Aportes para Comprender la Desinformación en la Época Contemporánea Desde una Perspectiva Historizante

Diego de Deus
Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, Brasil
Revista Comunicando
Associação Portuguesa de Ciências da Comunicação, Portugal
ISSN: 2184-0636
ISSN-e: 2182-4037
Periodicidade: Semestral
vol. 12, núm. 2, e023018, 2023

Recepção: 04 Setembro 2023

Aprovação: 30 Outubro 2023

Publicado: 15 Novembro 2023


1. Introdução

A desinformação tem levantado discussões e se tornado objeto de pesquisas e preocupações em várias esferas da sociedade contemporânea (Alvim, Zilio & Carvalho 2023). O termo consagrou-se mundialmente em 2016 na esteira das Eleições norte-americanas, sobretudo, pelas falas públicas do candidato republicano à época, Donald Trump – que mais tarde se elegeria presidente –, que rotulava qualquer informação, sendo ela falsa ou verdadeira, como fake news, na tentativa de deslegitimar informações que iam de encontro com seus interesses eleitorais, políticos ou mesmo pessoais (Allcott & Gentzkow, 2017). A narrativa de deslegitimação também se sobrepunha aos veículos profissionais de imprensa e jornalísticos americanos que, porventura, noticiavam fatos “desagradáveis” a respeito de Trump, suas propostas ou atitudes enquanto candidato (Allcott & Gentzkow, 2017).

Nos anos seguintes, o fenômeno calcado na desinformação e narrativas falaciosas passou a ser notado em vários outros eventos políticos e sociais marcantes pelo mundo (Varão, 2020), como o Brexit, no Reino Unido ainda em 2016 (D’ancona, 2018) e as eleições nacionais brasileiras de 2018 com o compartilhamento em massa de informações fraudulentas contra o petista Fernando Haddad que disputava a corrida presidencial naquele contexto contra o candidato eleito Jair Bolsonaro (Belisário & Geraldes, 2023; Mello, 2020; Ribeiro & Ortelado, 2018). Além destes, ainda é possível mencionar as eleições gerais brasileiras de 2022 (Tavares, De Souza Silva & De Oliveira, 2022) e, principalmente, a pandemia de Covid-19 (Naeem & Bhatti, 2020).

Em cada um destes cenários, a informação e a utilização dela por parte das instituições epistêmicas (como a ciência) ou democráticas (como os veículos de imprensa e autoridades judiciárias), muitas vezes ficaram em segundo plano frente à criação e o compartilhamento incessante de informações possivelmente fraudulentas entre usuários de redes sociais digitais que convergiam em disputas de sentidos sobre a “verdade” quanto ao que era comprovadamente verdadeiro ou falso.

Alguns autores (Alcott & Gentzkow, 2017; D’ancona, 2018; Marshall, 2017; Tavares, 2020) chamam a atenção para o mercado movido por interesses econômicos que a desinformação também propiciou na contemporaneidade. Ainda no que se refere às eleições de 2016 nos Estados Unidos, destaca-se os lucros que sites falsos sob o signo de canais noticiosos, orquestrados por um grupo de jovens macedônios, obtinham com a criação e o compartilhamento de informações sensacionalistas a favor de Donald Trump. Para se ter ideia, a empresa norte-americana de notícias Buzfeed identificou pelo menos 140 sites fraudulentos que vinham da pequena cidade de Veles, no interior do país. Descobriu-se que o grupo responsável pela criação dos conteúdos fraudulentos realizava a ação não movido por interesse políticos, mas, sim, financeiros, uma vez que o alcance das informações falsas compartilhadas pelas redes sociais on-line (com destaque para o Facebook) era tão grande sobre os apoiadores de Donald Trump nos Estados Unidos, que os sites fakes chegavam a lucrar milhares de dólares mensalmente com anunciantes a partir da quantidade de visitas (cliques) recebidas. Em uma entrevista concedida no final de 2016, um dos jovens que tinha 19 anos e participava do esquema na oportunidade, relatou que chegou a ganhar cerca de 1,8 mil euros em apenas um mês, todavia, que alguns colegas conseguiam alcançar a marca de milhares de dólares diariamente.

É evidente o impulsionamento que as redes sociais digitais oportunizaram para a criação de informações enganosas e, de maneira ainda mais agressiva, para a circulação desses conteúdos de forma estratégica, isto é, visando atingir públicos específicos para que o efeito da mensagem objetivada pela informação fraudulenta torne-se imediato (Santaella, 2019). A relação entre desinformação e os danos que ela pode causar de maneira prática à sociedade pode ser observada de várias maneiras: tanto do ponto de vista microssociológico quanto macrossociológico (Prando, 2021).

O primeiro diz respeito a danos direcionados especificamente à uma parcela de indivíduos e suas relações no cotidiano; já a segunda se refere à desconfiança sobre instituições epistêmicas e a deslegitimação da verdade factual face às emoções ou interesses de criadores e de pessoas que estão inclinadas a acreditar em determinada informação (D’ancona, 2018). A título de exemplo, do ponto de vista microssocial, é possível citar o caso da mulher que foi linchada no Guarujá, no litoral paulista brasileiro, em 2014, após um boato circular nas redes sociais digitais de que ela sequestrava crianças para utilizá-las em rituais malignos.

O caso teve bastante repercussão na ocasião e, até nos dias atuais, é um forte exemplo para demonstrar os danos que informações falsas impulsionadas pelas redes sociais digitais podem causar. Após quase 10 anos do ocorrido, o Ministério da Saúde brasileiro produziu uma campanha de conscientização protagonizada pela filha da vítima, à época criança, acerca da responsabilização de quem compartilha informações possivelmente falsas e os efeitos práticos na vida em sociedade.

Em contrapartida, sob a perspectiva macrossocial, é possível indicar o negacionismo relacionado à pandemia de Covid-19, vacinação e tratamento para a doença (Galhardi, Freire, Minayo & Fagundes, 2020; Mendes & Alzamora, 2023; Naeem & Bhatti, 2020; Paes, 2022), ou mesmo os ataques antidemocráticos contra o Congresso Nacional brasileiro, que foram orquestrados pelas redes sociais digitais por meio de grupos conservadores, no conhecido “8 de Janeiro” (Silveira, 2023).

O contexto da desinformação na contemporaneidade aparece quase sempre atrelado aos meios digitais de comunicação, em última instância, as redes sociais digitais. No entanto, alguns autores como Miller (2017), Victor (2017), Malik (2018) e Santaella (2019), e ressaltam um caráter histórico, social, comunicacional e político no qual a desinformação está calcada, não sendo ela algo exclusivo da contemporaneidade digital (Malik, 2018). Desta forma, o presente trabalho objetiva-se em analisar os diferentes elementos historicizantes que caracterizavam a desinformação do passado em relação aos eventos e desdobramentos contemporâneos do fenômeno, para melhor compreender em que medida é possível caracterizar a desinformação como algo da contemporaneidade.

Para tanto, no primeiro momento, busca-se contextualizar o entendimento do fenômeno na Sociedade da Desinformação (Marshall, 2017); depois, discute-se exemplos e utilizações estratégicas da informação e comunicação com o objetivo em desinformar na perspectiva histórica, com alguns exemplos de como as informações falsas circulavam e eram capazes de também influenciar a opinião pública no passado e, por fim, delimita-se caracterizações que possibilitam diferenciar e atribuir a desinformação na contemporaneidade.

Como aporte teórico, este trabalhou se baseou, entre outras publicações, no livro “Sociedade da Desinformação e Infodemia”, publicado pelo Selo PPGCOM (Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social), da Universidade Federal de Minas Gerais, no Brasil, em 2021. A obra reúne publicações de diversos pesquisadores (divididos entre a Universidade Federal de Minas Gerais, Universidade Federal de Ouro Preto e Pontifícia Universidade Católica) vinculados a diferentes grupos de pesquisa que se debruçam ao fenômeno desinformativo, buscando suas implicações epistemológicas e empíricas.

Além disso, buscou-se pelas obras mais citadas, no Brasil, em estudos que tratam sobre desinformação, a saber: Allcott e Gentzkow (2017) e Wardle e Derakhshan (2017). Este dado foi possível por meio da metapesquisa realizada por Mendes, Mattos e Santos (2023). Os autores fizeram um levantamento da bibliografia mais acionada acerca da desinformação entre 2020 e 2022, no Brasil, por meio do Periódicos Capes e as duas obras citadas anteriormente aparecem como uma das mais utilizadas para os referenciais dos trabalhos analisados.

Finalmente, também pesquisou-se por trabalhos que se contrapõem e fazem críticas às perspectivas apresentadas, principalmente, sobre Wardle e Derakhshan (2017), a fim de oferecer uma outra visão da dinâmica da desinformação na contemporaneidade. Ademais, como suporte para trabalhar as perspectivas historicizantes da desinformação, o presente artigo partiu das concepções de Santaella (2019) – cujas obras mais recentes tem se atentado à abordagem historicizante do fenômeno, como no livro “A pós-verdade é verdadeira ou Falsa (2019) –, da mesma maneira em “Uma História Social da Mídia: de Gutenberg à Internet” (2004), de Asa Briggs e Peter Burke. Ressalta-se que este trabalho compreende por “historicizantes” as características que podem ser atribuídas ao fenômeno da desinformação ao longo dos séculos, acreditando que ela não é algo exclusivo da contemporaneidade.

A obra faz uma análise dos meios de comunicação e destaca os contextos sociais e culturais em que se desenvolveram e emergiram. Além disso, os autores traçam a história das diferentes mídias e novas linguagens que elas criaram para civilização, principalmente, a ocidental. Embora os autores não façam menção à desinformação, considera-se ser um importante trabalho para compreender as dinâmicas informacionais e dos meios de comunicação ao longo da história.

2. Sociedade da Desinformação: Perspectivas do Contemporâneo

A expressão Sociedade da Desinformação foi utilizada por Marshall (2017) na tentativa de caracterizar as relações comunicacionais mediadas pelas redes sociais digitais e as consequentes implicações políticas, econômicas e sociais que as informações falsas, retiradas de contexto, entre outras categorias tidas como potencial desinformativo, podem acarretar sob a perspectiva da sociedade contemporânea. A abordagem possui uma característica distópica quando comparada às noções da Sociedade da Informação de Castells (2002), que tinha uma visada um tanto otimista com relação à democratização da informação como uma importante ferramenta para a promoção da cidadania e participação política em paralelo com o desenvolvimento do conhecimento científico, dos dispositivos tecnológicos e midiáticos digitais que emergiam naquele contexto.

Em contrapartida, Marshall (2017) destaca que a desinformação na contemporaneidade diz respeito a um excesso de informações que vêm de diversos meios e impedem a clara identificação do que é verdadeiro e/ou falso. A poluição de dados existentes hoje colabora negativamente para as disputas de poder entre dúvida e confiança, deslegitimação de instituições democráticas e epistêmicas, além de propiciar um capitalismo baseado na desinformação a partir da circulação em massa de conteúdos (desinformativos e informativos) pelo ecossistema midiático digital (Marshall, 2017). Para Mattos e Salgado (2021), a desinformação atual é constituída pela pluralidade de dinâmicas que opera processos de imitação, silenciamento e propagação intensa de fluxos dispersos (poluição informativa) de opiniões e informações completamente falsas nas redes sociais digitais.

Por outro lado, o debate quanto à uma definição conceitual da ideia de desinformação como um processo social que atravessa também relações de poderes, políticas, econômicas e, por consequência, comunicacionais, tem levantado uma série de discordâncias; quer seja para eleger uma palavra e/ou expressão para se referir ao tema, quer seja para elaborar conceitos que sustentem a estruturação teórica. Araújo (2021) ressalta a “necessidade de uma maior consistência conceitual em relação a esse fenômeno, sobretudo após o crescimento do uso, a partir da segunda metade do ano de 2020, do termo ‘infodemia’ (Araújo, 2021, p. 3).

Desde que o assunto ganhou espaço no cenário mundial, alguns termos já foram amplamente utilizados, como fake news (Allcott & Gentzkow, 2017), pós-verdade (D’ancona, 2018; Santaella, 2019) e propriamente as contribuições de Aggio (2021) no que diz respeito às teorias conspiratórias que ajudam, em alguma medida, para a compreensão do fenômeno desinformativo na contemporaneidade, a partir de estórias e crenças que circulam e causam efeitos práticos na percepção de mundo dos indivíduos, principalmente a partir da segunda metade do século XIX.

Dessa forma, Allcott e Gentzkow (2017) afirmam que as fake newssão conteúdos falsos produzidos intencionalmente e regidos por interesses (políticos, econômicos, sociais, etc.), com o objetivo de causar dano a algo ou alguém. No mesmo sentido, Varão (2020) entende que o termo ficou um tanto saturado e que já não é o suficiente para delimitar entendimentos conceituais a respeito de todo o processo desinformativo impulsionado pelas redes sociais on-line e seus efeitos práticos na sociedade. Ambos autores também chamam a atenção para a imitação, muitas vezes, da linguagem jornalística que se mescla com tons sensacionalistas; de todo modo, o formato jornalístico se faz presente para que determinada informação se venda como “notícia” (Recuero, 2019).

Moraes (2023) propõe um distanciamento do conceito de fake news em busca de analisar as condições de possibilidade. Nas palavras da autora:

Isto é, para que algo possa surgir, para que um pensamento possa acontecer, ou ainda, para que alguém possa dizer alguma coisa em determinado momento, são necessárias condições históricas para as possibilidades desse saber, sendo essas discursivas e não discursivas. (p.147)

Por outro lado, compreende-se que o termo desinformação parece ter ganhado o posto como mais aceito (também por ser mais abrangente), apesar de ainda não possuir uma definição conceitual rígida. Oliveira (2020) também se preocupa em encontrar um termo capaz de dimensionar o tema e problematiza a ideia de desordem informacional trazida por Wardle e Derakhshan (2017), cuja obra aparece recorrentemente em estudos que se debruçam sobre o fenômeno desinformativo (Mendes, Mattos & Santos, 2023).

Wardle e Derakhshan (2017) perpassam a noção de fake news como meramente “notícias falsas” e propõem três qualificações que, na visão deles, contemplam de maneira mais direcionada o fenômeno decorrente de uma desordem informacional: disinformation, misinformation . mal-information. A primeira diz respeito à criação e o compartilhamento intencional de informações falsas pelas redes sociais digitais, sempre movidas por objetivos de quem as criam; a segunda se relaciona com informações erradas que, ainda, sim, possuem caráter desinformativo.

Neste ponto, a principal diferença está na intencionalidade, isto é, enquanto a disinformation possui a intenção na criação e compartilhamento, a misinformation pode ser exemplificada por um erro em uma matéria jornalística no qual o veículo responsável pela publicação se retrata e repassa a informação correta, entre outras situações que podem ser encontradas no cotidiano e na troca e acesso de informações entre usuários na rede de conexão digital.

Por fim, a mal-information ocorre quando uma informação baseada na realidade é utilizada para causar danos a algo ou alguém. Sob este aspecto, é possível pensar, por exemplo, nos discursos de ódio movidos, na maioria das vezes, por conta das diferenças de crenças ou preferência política, entre outros exemplos, e tornam-se em motivos de ataques, difamação e outros tipos de prejuízos morais e até mesmo físicos, já que a intenção é colocar as pessoas em guerra uma contra as outras a partir de uma informação verdadeira que é intolerada por determinados grupos, mas apoiada por outros (Araújo, 2021).

Em contrapartida, apesar de a definição para o fenômeno desinformativo de Wardle e Derakhshan (2017) ter tido boa aderência em vários estudos referentes ao tema, outros autores têm criticado o caráter um tanto funcionalista deste modelo (Oliveira, 2020; Paes, 2022), no qual “um produtor emite uma mensagem, a partir de uma estrutura textual própria, que vai ser decodificado pelos sujeitos, como uma ordem natural do processo comunicativo” (Oliveira, 2020, p. 4). Para além da perspectiva funcionalista, Oliveira (2020) destaca o viés intencional, forte premissa presente em Wardle e Derakhshan (2017), que leva a definição a um reducionismo, inclusive histórico, à medida que se assemelha ao ideal da comunicação, que previa um ordenamento do mundo para a eficiência de um ato comunicacional direcionado.

Por isso, Oliveira (2020) acredita que a conceitualização de desinformação deve ir além da intencionalidade como elemento funcional. Na visão da autora, o fenômeno está calcado em práticas sociais nos quais os “sentidos são disputados para interesses próprios” (Oliveira, 2020, p. 16). Ela ainda compreende que, para além de buscar uma definição, faz-se importante compreender as dinâmicas de circulação da desinformação e as disputas de sentido a elas inerentes.

Apesar de a expressão disinformation ter uma tradução – um tanto literal – para o Português, as outras duas mal-information . misinformation não possuem referentes para o idioma. Assim, Recuero (2019) aciona uma alternativa para disinformation como sendo uma desinformação intencional e misinformationpara uma desinformação não intencional.

Da mesma forma, Alvim, Zilio e Carvalho (2023) concordam com o reducionismo da ideia quando vinculada, a priori, com a intencionalidade de causar dano. Para isso, utilizam a expressão “desinformação dolosa” para dizer a respeito da “difusão de relatos farsantes ou visões enganosas sobre personalidades ou eventos relevantes, particularmente interessantes para a geração de engajamento ou para a mobilização de opiniões políticas” (Alvim, Zilio & Carvalho, 2023, s/p).

Os autores ainda chamam a atenção para outra categoria denominada por eles por “descontextualização dolosa”, que se refere à falsificação geral ou ocultamento explicativo de um acontecimento relevante e, inicialmente, verdadeiro, ou da “extração leviana de inferências falsas a partir de explicações incompletas e super enviesadas de um certo acontecimento” (Alvim, Zilio & Carvalho, 2023, s/p).

Apesar de não existir um consenso quanto à uma definição clara do que é desinformação, o entendimento de Marshall (2017) acerca da Sociedade da Desinformação parece contemplar, mesmo que de maneira geral, aspectos que permeiam o fenômeno na contemporaneidade. A ideia reconhece o jogo de interesses e disputas de sentidos sobre a verdade que conteúdos fraudulentos possuem, sempre impulsionados pela lógica econômica do mercado que a própria desinformação proporcionou e possui hoje um terreno fértil (Tavares, 2020) para as dinâmicas de circulação de conteúdos desinformativos nos ecossistemas midiáticos digitais (Alzamora & Andrade, 2019; Oliveira, 2020).

3. A Desinformação no Contexto Histórico

É possível pensar a desinformação a partir da lógica da simulação (Santaella, 2019). Por isso, é importante não pensar a desinformação como antítese ao jornalismo, mas, sim, como uma espécie de distorção ética do trabalho jornalístico (Posetti, 2019). Neste sentido, ao considerar a desinformação a partir das contribuições dos autores citados na sessão anterior, é possível pensar a desinformação também de natureza mentirosa, pois se apropria de elementos lógicos e faz parecer verossímil uma narrativa falaciosa (Malik, 2018).

A concepção da lógica desinformativa não é algo exclusivo da contemporaneidade (Santaella, 2019) e inúmeros exemplos podem ser citados para sustentar esta afirmação. Assim, Malik (2018) busca contextualizações históricas para compreender o fenômeno desinformativo. Para isso, o autor recorre às cafeterias inglesas do século XVII e discorre acerca do pânico que tomou conta dos círculos reais de que estes estabelecimentos, recentemente criados e procurados pelas pessoas para troca de conversas, tivessem se tornado locais para desavenças políticas entre os cidadãos contra a monarquia.

Com isso, em 1672, Carlos II, Rei da Inglaterra à época, emitiu uma proclamação que pedia a contenção de notícias possivelmente falsas contra o governo, pois narrativas como esta serviriam para “alimentar uma inveja e insatisfação universal nas mentes de todos os bons súditos e Sua Majestade” (Malik, 2018 s/n, tradução própria).

Além disso, Malik (2018) ainda traz outro exemplo envolvendo a imprensa do século XX. No ano de 1924, dias antes de uma eleição geral na Inglaterra, o tradicional jornal Daily Mail publicou uma carta forjada conhecida como Carta de Zinoviev, que apresentava uma suposta diretriz de Moscou aos comunistas britânicos para se mobilizarem junto ao Partido Trabalhista.

No entanto, os trabalhistas perderam a eleição por uma vitória amplamente vantajosa. No mesmo sentido, Allcott e Gentzkow (2017) recordam da série de reportagens falsas sobre a descoberta de vida na lua, feita pelo jornal norte-americano New York Sun, em 1835. A mentira disfarçada de notícia teve grande repercussão no país e levou à criação de várias teorias conspiratórias em anos seguintes (Allcott & Gentzkow, 2017).

O historiador norte-americano Robert Darnton, em entrevista cedida à uma rádio francesa em 2017, foi além e afirmou que a desinformação existe ao menos desde o século VI, e exemplifica o comentário com base na história do império romano de Justiniano I. Procópio, conhecido historiador bizantino e escritor de histórias a respeito do império Justiniano, teve um texto secreto publicado e conhecido pela população, intitulado de Anekdotaque continha várias informações falsas a respeito de Justiniano I e de outros políticos da época que acabou por arruinar a reputação dessas pessoas diante da opinião pública (Victor, 2017).

Para o historiador, um exemplo que pode ser relacionado aos moldes da desinformação contemporânea é o do jornalista italiano e aventureiro, Pietro Aretino (1492-1556). Apesar de profissional, o jornalista escrevia curtos poemas e sonetos (espécie de tweets,na contemporaneidade) e os colocavam na estátua de uma personagem conhecida por Pasquino – a figura de um guerreiro heleno –, em Roma. Os poemas difamavam diariamente os cardeais que postulavam o posto de Papa. Os discursos eram satíricos, mas não deixavam de distorcer a realidade e causar danos às imagens dessas pessoas (Victor, 2017).

As colagens passaram a ser chamadas de “pasquinadas” e tanto os cardeais quanto políticos da época começaram a pagar Aretino para que ele não fizesse mais este tipo de ação. O interesse econômico para a contenção ou a disseminação de informações falsas também pode ser encontrado na Inglaterra de 1770. Na época, pessoas conhecidas por “homem-parágrafo” recolhiam fofocas e boatos e as escreviam em pedacinhos de papel e vendiam o material para impressores ou editores de jornais que as imprimiam como pequenas reportagens difamatórias (Victor, 2017).

A ideia de fofoca e/ou boato pode ser considerada a forma primitiva da desinformação ainda em sua escala microssocial (Prando, 2021). José Ângelo Gaiarsa, no livro “Tratado Geral da Fofoca” (2015), faz uma análise histórica, sociológica e filosófica de como estes dois fatores colaboram para a disseminação de informações fraudulentas para causar danos a alguém ou desestabilizar a confiança sobre algo (Gaiarsa, 2015).

No mesmo sentido, Briggs e Burke (2004) descrevem o boato na perspectiva histórica como uma espécie de serviço postal oral, com uma velocidade de disseminação – de maneira off-line – admirável. Os autores retornam ao século XVIII no interior da França para lembrar do período chamado de “Grande Medo”.

Na ocasião, circularam boatos entre os trabalhadores rurais a respeito da vinda de brigadas para massacrá-los e atacar as plantações, às ordens dos ingleses ou da própria aristocracia (Briggs & Burke, 2004) instaurando um cenário de conflito social e de desconfiança, características ainda permanentes da desinformação na contemporaneidade (D’ancona, 2018; Salgado & Mattos, 2021). É evidente a grande diferença entre boato e o que é compreendido por desinformação na contemporaneidade, no entanto, é possível identificar semelhanças quanto suas utilizações com objetivos de instaurar desconfiança e até mesmo gerar crises.

Briggs e Burke (2004) ainda citam a censura como um importante elemento para compreender os efeitos da informação na vida em sociedade. Assim, a prática comum em governos autoritários, o não fornecimento ou a barragem de informações contrárias aos interesses do Estado, pode ser compreendida também como uma espécie de desinformação; ela está calcada não no excesso ou pela desordem informativa (Wardle & Derakhshan, 2017), mas, sim, pela falta de informações.

Assim sendo, é possível compreender a desinformação como um processo inerente à vida em sociedade, enquanto um campo de relações sociais e trocas informacionais. A utilização de informações (ou o controle para que elas não sejam divulgadas) implica nas dinâmicas sociais e da instauração na confiança coletiva e pública sobre eventos que ocorrem no cotidiano.

Em algumas instâncias, percebe-se que o caráter desinformativo de informações falsas ou distorcidas ao longo da história possui ainda fortes similaridades com a lógica desinformativa contemporânea, na qual os interesses e os objetivos a ela pretendidos se dão em natureza difamatória, política, social e também movida por interesses econômicos.

4. Caracterizações da Desinformação na Contemporaneidade

De acordo com Alzamora (2020), a característica contemporânea da desinformação e a novidade dela em relação a exemplos do passado se relaciona objetivamente à dinâmica transmídia de distribuição de informações na contemporaneidade. Segundo a autora, é este elemento que impulsiona o compartilhamento em massa de conteúdos possivelmente fraudulentos que são elaborados ou colocados de maneira a enganar o público a partir da utilização de recursos tecnológicos digitais.

Esta lógica envolve estratégias multiplataforma de distribuição e possibilita a circulação massiva pela ação social e algorítmica das redes sociais on-line (Alzamora, 2020). Com relação à esta dinâmica de circulação de informações falsas, a autora afirma que gira em torno da crença comum mediada pela informação apresentada, ainda que essa informação seja nitidamente falsa.

Para Santaella (2019), a principal característica da desinformação na contemporaneidade se dá no modo como as notícias são produzidas, disseminadas e interpretadas. Na era dos veículos de comunicação de massa, as notícias eram produzidas e relatadas a partir de fontes restritas, teoricamente confiáveis a partir de condutas éticas que seguiam uma espécie de deontologia profissional do jornalismo.

Na contemporaneidade, essa dinâmica descentralizou-se e todos os usuários da rede podem produzir conteúdo sob o signo de notícia e se apresentarem como profissionais e/ou autoridades para “informarem” o público.

A desinformação na contemporaneidade pode ser caracterizada pelo excesso de informações capaz de gerar confusão ao público, pois, para além desta cacofonia informacional, esses conteúdos vêm de diversos meios e estão presentes praticamente em todo o momento do cotidiano (Santaella, 2019).

Neste contexto, compreende-se que a eficiência estratégica do conteúdo, isto é, o objetivo pelo qual ele foi criado, torna-se mais importante do que a precisão dos fatos ou dos conhecimentos produzidos empiricamente. Este cenário possibilita a distorção, o exagero e a própria criação de “fatos” já que esta ação pode gerar capital se produzido e destinado ao público correto (Santaella, 2019).

De acordo com Malik (2018), mentiras disfarçadas de notícias são tão antigas quanto as próprias notícias. É evidente que o problema da desinformação perpassa a noção de mentira ou boato, já que atualmente, uma forte diferença está na presença de fornecedores dessas informações falsas.

No passado, a tentativa de manipular a opinião pública se restringia a governos e figuras poderosas; a tentativa na contemporaneidade perpassou estes limites e hoje está ao alcance de qualquer indivíduo e as “figuras poderosas” podem ser representadas por usuários que possuem um certo número de seguidores nas redes sociais digitais e adquirirem o status como tal.

Para Malik (2018), no passado, governos poderiam manipular os fatos para apresentar a mentira sob o signo de verdade e, na contemporaneidade, as mentiras são aceitas como realidade, porque a noção de verdade fragmentou-se. “Verdade, geralmente tem pouco mais significado do que: ‘isso é o que eu acredito’ ou: ‘isso é o que eu acho que deveria ser verdade’” (Malik, 2018, s/p tradução própria).

Nesse sentido, Araújo (2021) discorre a respeito da dissonância cognitiva que ocorre principalmente por meio das câmaras de eco (Santaella, 2019). Santaella (2019) aciona o conceito de homofilia que, em suma, se baseia no processo de crença reforçado a cada relação que ocorre entre indivíduos que pensam de maneira semelhante, distorcendo percepções entre o que é comprovadamente verdadeiro ou falso, pois o que interessa neste processo, é reforçar a crença naquilo que é agradável à razão de cada indivíduo, endossando percepções prévias e fugindo de dúvidas ou elementos que possam desestabilizar essas crenças.

Percebe-se, portanto, que a dissonância cognitiva causada por este processo não se dá necessariamente na contemporaneidade pois se relaciona às dinâmicas das mentes humanas, todavia, esse processo foi elevado a níveis jamais vistos por meio das redes sociais on-line e de grupos digitais de interação os quais as próprias plataformas possibilitam em seus ecossistemas, criando espécie de filtros-bolhas, à medida que os usuários passam a se informar somente por determinados canais, por determinadas pessoas e tendo acesso somente a determinados tipos de informações – entre elas, falsas – e possibilitando o desprezo de informações verdadeiras (Santaella, 2019).

Uma das principais características, ao analisar a desinformação na contemporaneidade, pauta-se, entre outros elementos, nas dinâmicas de circulação, na eficácia de narrativas falaciosas e da instauração da desconfiança/confiança, crença/descrença sobre entidades epistêmicas – que também não estão isentas de interesses e valores, mas cuja desestabilização de suas autoridades também não parece benéfica – capaz de causar efeitos sociais negativos e severos nos dias atuais.

Paes (2022) cita, por exemplo, a desconfiança sobre a eficácia (e os riscos) que a vacina contra Covid-19 poderia trazer à população. A narrativa apoiada e compartilhada por meio das redes sociais digitais, foi capaz de deslegitimar orientações feitas por órgãos de saúde e entidades como a Organização Mundial da Saúde (OMS). A atitude colocava em risco tanto pessoas que decidiram não se vacinar por acreditar nestas informações em detrimento àquilo que era preconizado por instituições especialistas no tema, quanto indivíduos que conviviam com essas mesmas pessoas (Paes, 2022).

No âmbito político, por exemplo, a desconfiança sobre a segurança do sistema eleitoral brasileiro e o próprio sistema judiciário como um todo que, principalmente durante as eleições gerais ocorridas no país, em 2022, foram alvos de acusações quanto à manipulação do resultado eleitoral, oferecendo fortes riscos à democracia brasileira (Tavares, Silva & Oliveira, 2023).

O mercado criado pela desinformação também é um importante aspecto desta sociedade (Marshall, 2017). A lógica do clickbait, a ênfase trasmidiática que utiliza de elementos persuasivos para possibilitar a eficácia de discursos falaciosos, a noção da desinformação como produto (muitas vezes encomendado para determinadas finalidades) e o desenvolvimento de técnicas cada vez mais sofisticadas para simular a realidade com a máxima veridicidade possível é um problema grave que provoca a emergência do fenômeno na contemporaneidade (Marshall, 2017).

Segundo Han (2022), o que a sociedade contemporânea presencia é uma mudança nos regimes de informação. O desenvolvimento algorítmico e o advento da inteligência artificial são exemplos disso. Tais mudanças geram impactos políticos, sociais e econômicos. Tanto as crenças como as maneiras de se comunicar sempre foram características da vida em sociedade.

Dessa forma, a desinformação compreendida como simplesmente um ato de “desinformar” não deve ser discriminada totalmente, já que oferece uma noção da lógica mais rudimentar do fenômeno. O importante na contemporaneidade é identificar o contexto da desinformação; compreender as dinâmicas de circulação e todos os atravessamentos políticos, econômicos, sociais, ideológicos, etc., que o fenômeno carrega e os efeitos práticos que ela traz e ainda poderá trazer à vida em sociedade.

Considerações Finais

O estudo teve o objetivo em compreender as principais características que a desinformação possui na contemporaneidade a partir de uma perspectiva historicizante. Em primeiro lugar, faz-se importante destacar a necessidade de uma melhor compreensão epistemológica do fenômeno da desinformação para elucidar ainda com mais precisão os efeitos práticos que ele pode trazer.

O termo “desinformação” apresenta noções introdutórias gerais para uma noção preliminar do fenômeno e suas problematizações, conforme descritas ao longo no trabalho, mas ainda carece de maior rigor conceitual e epistemológico para um entendimento mais claro quanto ao que se pode compreender como “desinformação” no cenário contemporâneo.

Neste sentido, o problema esteja, talvez, na dificuldade em definir com palavras e conceitos quais seriam os efeitos práticos da desinformação, tal elemento dificultador pode justificar-se sob o fato da recente emergência do fenômeno e das várias alterações que ele apresentou em menos de 10 anos após sua aparição com força no cenário internacional e uma discussão mais ou menos sistematizada.

O desenvolvimento de tecnologias cada vez mais sofisticadas é um exemplo de como as pessoas interessadas em desinformar se apropriam desses conhecimentos para espalhar mentiras, informações retiradas de contexto, distorcidas ou até mesmo para a propagação de discursos de ódio pelas redes sociais digitais. As deepfakes,vídeos manipulados cujo os rostos de pessoas e vozes são trocados e alterados, respectivamente, na tentativa de enganar, é um indício do que pode ser a principal tendência desinformativa em um futuro a curto prazo ante o desenvolvimento da inteligência artificial.

Importante destacar também, que o humano está por trás de todas essas dinâmicas e isso implica em um problema de natureza ética: apesar de a Sociedade da Desinformação, com um aspecto da sociedade contemporânea, ser regida boa parte por redes algorítmicas, faz-se necessário lembrar que essas operações são realizadas por humanos que programam essas inteligências artificiais para finalidades objetivadas por interesses.

Na tentativa de buscar relações entre a desinformação contemporânea e a desinformação do passado, é possível apontar algumas semelhanças como a tentativa de manipulação da realidade e/ou da opinião pública e instaurar cenários de desconfiança. Em ambos os casos, a objetivação de tais ações partem de disputas de interesses quer seja de governos, no passado e no contemporâneo, quer seja de indivíduos conectados na sociedade atual.

Pensar a desinformação em um novo regime de informação, como um processo social e inerente à vida em sociedade – compreendendo que a informação está substancial e historicamente ligada à civilização e relações humanas – não reduz o fenômeno à contemporaneidade, mas faz compreender como algo diretamente (mas não somente) relacionado ao humano como um ser social.

O presente artigo reconhece as limitações aqui dispostas para melhor compreender a desinformação e apontar possíveis caminhos que pudessem colaborar de maneira mais assertiva para a conceitualização do fenômeno. Reconhece-se, ainda, que os exemplos trazidos para discutir e comparar a desinformação no passado em relação à contemporaneidade, que foram analisados, são limitados, mas podem oferecer importantes insightspara estudos futuros. Por outro lado, ressalta-se a relevância de introduzir elementos que possam inspirar estudos posteriores que visem dar uma caracterização epistemológica à desinformação ou mesmo aprofundar as discussões e análises acerca da transição entre os regimes de informação (online e offline) a partir de uma perspectiva historicizante.

Para isso, acredita-se que os estudos relacionados às teorias conspiratórias sejam indispensáveis para atender a este objetivo, primeiro pois elas surgiram muito antes das redes sociais digitais e, segundo, pois alguns próprios veículos profissionais de imprensa, no passado, publicavam essas teorias, o que pode ter servido como “material” para a criação de crenças e de novas teorias em anos seguintes, contribuindo para a formulação de crenças ao longo das décadas.

Dessa forma, seria possível também compreender, em alguma medida, a circulação de conteúdos desinformativos nos ecossistemas midiáticos digitais e o que leva também à elaboração dos sistemas de crenças a partir das motivações e efeitos dessas circulações na contemporaneidade.

Material suplementar
Referências
Aggio, C. (2021). Teorias conspiratórias, verdade e democracia. In: Alzamora, G., Mendes, C. & Ribeiro, D. M. (orgs). Sociedade da desinformação e infodemia (pp. 63-86). FAFICH Selo PPGCOM UFMG. https://seloppgcom.fafich.ufmg.br/novo/wp-content/uploads/2021/10/Sociedade-da-desinformacao-e-infodemia-Selo-PPGCOM-UFMG-1.pdf
Allcott, H. & Gentzkow, M. (2017). Social media and fake news in the 2016 election. Journal of Economic Perspectives, 31(2), 211-236. https://web.stanford.edu/~gentzkow/research/fakenews.pdf
Alvim, F. F., Zilio, R. L & Carvalho, V. O. (2023). Guerras Cognitivas na Arena Eleitoral: O controle Judicial da Desinformação (Fake News). Lumem Juris.
Alzamora, G. & Andrade, L. (2019). A dinâmica transmídia de fake news conforme a concepção pragmática de verdade. Revista Matrizes, 13(1), 109-131. https://www.revistas.usp.br/matrizes/article/view/149592
Alzamora, G. (2020). A dinâmica transmídia de notícias falsas sobre ciências:
Araújo, C. A. Á. (2021). Infodemia, desinformação, pós-verdade: o desafio de conceituar os fenômenos envolvidos com os novos regimes de informação. The International Review of Information Ethics, 30(1). https://doi.org/10.29173/irie405
Belisário, K. T. & Geraldes, E. C. (2023). Estadista fake: O discurso do presidente Jair Bolsonaro na Assembleia-Geral das Nações Unidas. In. Desinformação o mal do século: distorções, inverdades, fake news: a democracia ameaçada / Thaïs de Mendonça Jorge (organizadora). -- Brasília: Supremo Tribunal Federal: Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília. https://www.stf.jus.br/arquivo/cms/campanha/anexo/combate/ebook_desinformacao_o_mal_do_seculo.pdf
Briggs, A.; Burke, P. (2004). Uma história social da mídia: de Gutenberg à Internet (1ª ed.). Jorge Zahar Editor.
Castells, M. (2002). A Sociedade em rede (6ª ed.). Paz e Terra.
D’ancona, M. (2018). Pós-verdade. A nova guerra contra os fatos em tempos de fake news (1ª ed.). Faro Editorial.
Galhardi, C. P., Freire, N. P., Minayo, M. C. S. & Fagundes, M. C. M. (2020). Fato ou Fake? Uma análise da desinformação frente à pandemia da Covid-19 no Brasil. Ciência & Saúde Coletiva, 25(10), 4201-4210, https://www.scielo.br/j/csc/a/XnfpYRR45Z4nXskC3PTnp8z/?lang=pt
Gaiarsa, J.A. (2015). Tratado geral sobre a fofoca uma análise da desconfiança humana (15º ed.). Ágora.
Han, B. C. (2022). Infocracia: digitalização e a crise da democracia (1ª ed.). Editora Vozes.
Kirby, E. J. (2016, 10 de dezembro). A cidade europeia que enriquece iventando notícias – e influenciando eleições. BBC News Brasil. https://www.bbc.com/portuguese/internacional-38206498
Malik, K. (2018). Fake news has a long history. Beware the state being keeper of ‘the truth’. The Guardian. https://www.theguardian.com/commentisfree/2018/feb/11/fake-news-long-history-beware-state-involvement
Marshall, J. P. (2017). Desinformation Societiy, Communication and Cosmopolitan Democracy. Cosmopolitan Civil Societies Journal, 9(2), 1-21. https://www.researchgate.net/publication/318597794_Disinformation_Society_communication_and_cosmopolitan_democrac
Matos, M. Â. & Salgado, T. (2021). Da informação à desinformação: conceitos e abordagens das teorias da comunicação. In: Alzamora, G., Mendes, C. & Ribeiro, D. M. (orgs). Sociedade da desinformação e infodemia. FAFICH Selo PPGCOM UFMG. https://seloppgcom.fafich.ufmg.br/novo/wp-content/uploads/2021/10/Sociedade-da-desinformacao-e-infodemia-Selo-PPGCOM-UFMG-1.pdf
Mello, P. C. (2020). A máquina do ódio: notas de uma repórter sobre fake news e violência digital. Companhia das Letras.
Mendes, C. M., & Alzamora, G. C. (2023). Lógicas da propagação da informação e da desinformação no contexto da pandemia de covid-19: abordagem semiótica. MATRIZes, 17(1), 193-222. https://doi.org/10.11606/issn.1982-8160.v17i1p193-222
Mendes, C., Mattos, M. & Santos, A. (2023). Metapesquisa dos conceitos de desinformação e termos congêneres em artigos publicados no Portal de Periódicos Capes entre 2020-2022 no contexto pandêmico: abordagem quantitativa. Revista Eco-Pós, 26(1), 237-267. https://doi.org/10.29146/eco-ps.v26i01.28029
Moraes, M. (2023). A criação do “mercado da verdade” na era da pós-verdade. In. Desinformação o mal do século: distorções, inverdades, fake news: a democracia ameaçada / Thaïs de Mendonça Jorge (organizadora). Supremo Tribunal Federal: Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília. https://www.stf.jus.br/arquivo/cms/campanha/anexo/combate/ebook_desinformacao_o_mal_do_seculo.pdf
Naeem, S. B., Bhatti, R. & Khan, A. (2021). An exploration of how fake news is taking over social media and putting public health at risk. Health Information and Libraries Journal, 2(8), 143-149. http://dx.doi.org/10.1111/hir.12320
Oliveira, T. M. de. (2020). Como enfrentar a desinformação científica? Desafios sociais, políticos e jurídicos intensificados no contexto da pandemia. Liinc Em Revista, 16(2), e5374. https://doi.org/10.18617/liinc.v16i2.5374
Oxenham, S. (2019, 8 de julho). ‘Ganhava a vida escrevendo notícias falsas’. BBC News Brasil. https://www.bbc.com/portuguese/vert-fut-48832474
Paes, F. A. O. De. (2022). Desinformação científica no Twitter: fixação de crenças em torno da cloroquina durante a pandemia da covid-19 [Dissertação de mestrado Universidade Federal de Minas Gerais], repositório da UFMG. https://repositorio.ufmg.br/handle/1843/45844
Posetti J. (2019). Transformação da indústria de notícias: tecnologia digital, redes sociais e disseminação da informação e desinformação. In: Posetti, I. (org.) Jornalismo, fake news & desinformação: manual para educação e treinamento em jornalismo. https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000368647
Prando, R. A. (2021). Fake news e política na sociedade brasileira. In: Amaral, L. F. P., Prando, R. A. (coord.) Fake News: riscos à democracia. Editora IASP.
Recuero, R. (2019). Disputas discursivas, legitimação e desinformação: o caso Veja x Bolsonaro nas eleições de 2018. Comunicação, Mídia e Consumo, 16(47), 432. http://dx.doi.org/10.18568/CMC.V16I47.2013
Rossi, M. (2014, 5 de maio). Mulher espancada após boatos em rede social morre em Guarujá. G1. https://g1.globo.com/sp/santos-regiao/noticia/2014/05/mulher-espancada-apos-boatos-em-rede-social-morre-em-guaruja-sp.html
Santaella, L. (2019). A pós-verdade é verdadeira ou falsa? Estação das Letras e Cores.
Sociedade da desinformação e infodemia (2021). Organizadores: Alzamora G., Conrado Mendes C. M. & Ribeiro D. M. – Belo Horizonte, MG: Fafich/Selo PPGCOM/UFMG. (Olhares Transversais; v. 1).
Ribeiro, M. M. & Ortellado, P. (2018). O que são e como lidar com as notícias falsas. Sur - Revista Internacional de Direitos Humanos, 15(27), 71-83. https://repositorio.usp.br/item/002993181
Tavares, L. P., Silva, G. de S., & Oliveira, D. L. de. (2023). Checagem de fatos no Twitter: desinformação nas eleições do Brasil em 2022: DISINFORMATION IN THE 2022 BRAZILIAN ELECTIONS. Animus. Revista Interamericana De Comunicação Midiática, 21(47). https://doi.org/10.5902/2175497772251
Varão Ribeiro Carvalho, R. L. (2020). Uma breve história de ressentimento, propaganda, fake news, desinformação e eleições no Brasil recente. Cambiassu: Estudos Em Comunicação, 15(26), 139–146. https://periodicoseletronicos.ufma.br/index.php/cambiassu/article/view/15237
Victor, F. (2017, 19 de fevereiro). Notícias falsas existem desde o século 6, afirma historiador Robert Darnton. Folha de São Paulo. https://www1.folha.uol.com.br/paywall/login.shtml?https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2017/02/1859726-noticias-falsas-existem-desde-o-seculo-6-afirma-historiador-robert-darnton.shtml
Wardle, C. & Derakhshan, H. (2017). Information Disorder: Toward and interdisciplinary framework for research and policy making.Council of Europe Report. https://rm.coe.int/information-disorder-toward-an-interdisciplinary-framework-for-researc/168076277c
Notas
Autor notes
Diego de Deus é Mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da Universidade Federal de Minas Gerais e jornalista pelo Centro Universitário das Faculdades Associadas de Ensino (UNIFAE). Integrante da Rede de Pesquisa em Semiótica, Interações e Materialidades Midiáticas (SIMM), do Grupo Mídia, Semiótica e Pragmatismo (Mediação) e do Núcleo de Estudos da Realidade Digital (NERD).
Buscar:
Contexto
Descargar
Todas
Imágenes
Modelo de publicação sem fins lucrativos para preservar a natureza acadêmica e aberta da comunicação científica
Visor móvel gerado a partir de XML JATS4R