Comunicação, Género e Sexualidades

Humor e Mulheres no Contexto Português

Humor and Women in the Portuguese Context

Humor y Mujeres en el Contexto Portugués

Inês de Sousa Rua Santos Costa
Universidade de Coimbra, Coimbra, Portugal

Revista Comunicando

Associação Portuguesa de Ciências da Comunicação, Portugal

ISSN: 2184-0636

ISSN-e: 2182-4037

Periodicidade: Semestral

vol. 12, núm. 2, e023016, 2023

revistacomunicando@gmail.com

Recepção: 08 Maio 2023

Aprovação: 03 Outubro 2023

Publicado: 16 Outubro 2023



DOI: https://doi.org/10.58050/comunicando.v12i2.339

Resumo: A relação estabelecida entre Humor e Mulheres tem sido, ao longo da história da humanidade, conturbada. À semelhança de outros aspetos da vida quotidiana, por muito tempo foi negada às mulheres a capacidade de serem engraçadas. Por outro lado, os veículos pelos quais se produzia humor esteve durante muito ligado aos media tradicionais, tendo recentemente extravasado para os media digitais. Neste sentido, surge a questão de investigação que norteou este estudo: como é que as mulheres que produzem humor vivenciam essa experiência em função do seu género e, secundariamente, de que modo os media digitais têm influência nessa componente? Para tal, recorrendo-se metodologicamente à Análise Temática Crítica, como definida por Lawless e Chen (2019), foram analisadas entrevistas realizadas a 12 mulheres humoristas portuguesas. Os resultados mostraram que as participantes consideram que existe um contexto histórico e social associado ao seu género que tem reflexos na forma como o humor produzido por mulheres ainda é visto em Portugal, diferenciando-se, por isso, das experiências dos seus pares masculinos. Neste sentido, embora evidenciem que o facto de serem mulheres influencia o humor que produzem, procuraram marcar a sua individualidade e denotar que o humor derivada das experiências pessoais que cada indivíduo vivencia. Além disso, as redes sociais foram destacadas, pelas entrevistadas, como uma forma de ganhar notoriedade para atrair público para espetáculos ao vivo, contribuindo também para a existência de mais mulheres a produzir humor.

Palavras-chave: Humor, Mulheres, Comédia Stand Up, Media Digitais.

Abstract: The relationship established between Humor and Women has been, throughout human history, troubled. Like other aspects of daily life, women have long been denied the ability to be funny. On the other hand, the vehicles through which humor was produced were for a long time linked to traditional media, having recently spilled over into digital media. In this sense, the research question that guided this study arises: how do women who produce humor live this experience according to their gender and, secondarily, how do digital media influence this component? To this end, using methodologically the Critical Thematic Analysis, as defined by Lawless e Chen (2019), interviews carried out with 12 Portuguese women comedians were analyzed. The results showed that the participants consider that there is a historical and social context associated with their gender that has repercussions on how humor produced by women is still seen in Portugal, differentiating, for this reason, from the experiences of their male peers. In this sense, although they show that the fact that they are women influences the humor they produce, they seek to mark their individuality and denote that humor derives from the personal experiences that each lives. Furthermore, social networks were highlighted by the interviewees as a way of gaining notoriety to attract audiences to live shows, also contributing to the existence of more women producing humor

Keywords: Humor, Women, Stand Up Comedy, Digital Media.

Resumen: La relación que se establece entre el Humor y la Mujer ha sido conflictiva a lo largo de la historia de la humanidad. Al igual que con otros aspectos de la vida cotidiana, a las mujeres se les ha negado durante mucho tiempo la capacidad de ser graciosas. Por otro lado, los vehículos a través de los cuales se producía el humor estuvieron durante mucho tiempo vinculados a los medios tradicionales, habiéndose desbordado recientemente a los medios digitales. En este sentido, surge la pregunta de investigación que guió este estudio: ¿cómo viven las mujeres productoras de humor esta experiencia en función de su género y, en segundo lugar, cómo influyen los medios digitales en este componente? Para ello, recurriendo metodológicamente al Análisis Temático Crítico, tal como lo definen Lawless y Chen (2019), se analizaron entrevistas realizadas a 12 comediantes portuguesas. Los resultados mostraron que las participantes consideran que existe un contexto histórico y social asociado a su género que repercute en la forma en que el humor producido por mujeres es visto en Portugal, diferenciándose así de las experiencias de sus pares masculinos. En este sentido, si bien muestran que ser mujer influye en el humor que producen, buscaron marcar su individualidad y denotar que el humor deriva de las vivencias personales que vive cada individuo. Además, las redes sociales fueron destacadas por las entrevistadas como una forma de ganar notoriedad para atraer público a los espectáculos en vivo, contribuyendo también a la existencia de más mujeres productoras de humor.

Palabras clave: Humor, Mujer, Comedia Stand Up, Medios digitales.

1. Introdução

O humor, enquanto estímulo de provocar o riso, é uma característica inerente à condição humana, manifestando-se como um modo discursivo. Foi principalmente durante o século XX que o humor despertou interesse na comunidade científica, abarcando diferentes campos de investigação, tais como psicologia, sociologia e estudos linguísticos (Larkin-Galiñanes, 2017).

Por outro lado, os Estudos de Género ganharam visibilidade e consolidaram-se como campo de estudo nas Ciências Sociais sobretudo a partir da década de 1970. Desde então, os Estudos de Género têm-se ocupado, de forma interdisciplinar, com a identidade de género e as representações de género, assumindo diferentes trajetórias em função de fatores temporais e espaciais (Marchbank & Letherby, 2014).

Neste sentido, “à medida que o significado do género mudou, a sua relação com a linguagem e a comunicação – incluindo o humor – também mudou” (Crawford, 2003, p. 1413). Não é, portanto, de estranhar que o campo de investigação sobre o humor se debruce sobre “se os homens e as mulheres diferem nos seus usos e experiências do humor, e quais poderão ser as causas subjacentes a tais diferenças, se for verdade” (Greengross, 2020, p. 175).

Além disso, num passado bastante recente, as pessoas humoristas trabalhavam em formatos tradicionais. O processo de produção tem mudado através da comédia stand up e das redes e plataformas sociais nos últimos tempos.

Neste sentido, surge a questão de investigação que norteará este estudo: como é que as mulheres que produzem humor vivenciam essa experiência em função do seu género e, secundariamente, de que modo os média digitais têm influência nessa componente?

O presente estudo teve como base inicial a revisão de literatura relacionada com o tema. Centraremos a nossa abordagem teórica em torno de, entre outras, algumas pessoas que se dedicaram especificamente à temática de Humor e Mulheres, nomeadamente Regina Barreca (1992, 1996) e Nancy Walker (1988).

A parte empírica do trabalho será constituída pela análise de entrevistas realizadas como instrumento de recolha de informação, tendo por base metodológica a Análise Temática Crítica, como definida por Lawless e Chen (2019). Do estudo fizeram parte 12 mulheres humoristas portuguesas, onde se procurou entender como é que as mulheres que produzem humor vivenciam essa experiência em função do seu género.

2. Relação Entre Humor e o Género

Enquanto um estímulo que tende a provocar o riso, o humor é um aspeto universal da condição humana e é também um fenómeno social e uma estratégia de comunicação presente nas mais diversas culturas, sendo veiculado através de variados meios e formas e abarcando todos aspetos da vida quotidiana (Berger, 1987; Acselrad, 2004; Koestler, 2019).

Para Regina Barreca (1996), “a criação e o prazer do humor têm sido tradicionalmente considerados privilégios masculinos” (p. 42), à semelhança de outros fatores quotidianos. A convicção de que as mulheres não têm piada foi sustentada por várias pessoas a quem sempre foi reconhecido um especial estatuto e credibilidade na sociedade:

Esse mito, que pode ser mais precisamente chamado de perceção errónea, tem uma história longa e firmemente arraigada. Em tempos relativamente modernos, pensadores tão sérios quanto Schopenhauer, Bergson e Freud desqualificaram as mulheres da arena cómica; quando eles e outros homens escreveram sobre humor, risadas e piadas, eles queriam dizer humor, risadas e piadas masculinas. (Finney, 1994, p. 1)

Sublinhamos as palavras de Alba Silva (2015) quando refere que:

As mulheres não se tornaram repentinamente engraçadas nos anos 1990, nem repentinamente ambiciosas nos anos 1970, nem sexualmente conscientes nos anos 1960 ou inteligentes no final do século XIX. Tais características, obviamente, sempre existiram, mas, de algum modo, sempre foram subestimadas. (p. 17)

É assim também que Regina Barreca (1996, p. 2) reflete como “não deveria ser surpresa, então, que a vida das mulheres sempre tenha sido cheia de humor. O humor feminino surge como ferramenta de sobrevivência nas selvas sociais e profissionais, e como arma contra os absurdos da injustiça”.

As mulheres, mesmo sendo metade da população, ainda são consideradas uma minoria. Não se trata, portanto, de uma questão numérica, mas sim de um conceito de subordinação associado a relações de poder. Neste sentido, Nancy Walker (1988) explica que, sendo as mulheres consideradas uma minoria, existe, à semelhança de outros grupos minoritários, um humor que “incorpora uma dialética "nós-eles" na qual os homens são, de muitas maneiras, externos à experiência das mulheres” (p. 13). Além disso, “o humor realizado por grupos socialmente marginalizados, como as mulheres, empodera por meio da subversão da cultura dominante” (Rozek, 2015, p. 25). Assim, o humor produzido por mulheres:

Revela uma consciência coletiva: as mulheres dão conselhos umas às outras sobre como lidar com os homens, falam de experiências femininas comuns, como maternidade, e embora não criem estereótipos negativos específicos dos homens, elas deixam claro que um grupo diferente delas estabeleceu as regras pelas quais elas devem viver. (Walker, 1988, p. 13)

Walker (1988) ilustra como a questão do sentido de humor das mulheres engloba uma complexidade de suposições culturais que incidem sobre inteligência, competência e o “papel próprio da mulher”. É, neste seguimento, que “enquanto a mulher for vista como companheira, objeto sexual e empregada doméstica, não lhe será permitido ao mesmo tempo a capacidade de humor, com a sua implicação de superioridade e a sua crítica da realidade social” (p. 98).

Em 2007, um artigo publicado no jornal Público, que questionava no seu título “Porque é que há poucas mulheres a escrever humor?”, constatava que:

Não há mulheres a escrever humor em Portugal. Perdão. Ana Bola, Patrícia Castanheira e Maria João Cruz (das Produções Fictícias) fazem-no. Algumas começam a aparecer timidamente. Outras apareceram com a mesma velocidade com que se diluíram no boom da SIC Radical e do stand-up comedy que pôs fim a um deserto humorístico domado pelo teatro de revista, por Hérman e pelos Malucos do Riso. Mas as mulheres humoristas, e sobretudo as autoras humoristas, continuam a ser minoria. (Caneco, 2007)

Já um artigo da revista Sábado, datado de 2020, dá-nos conta da existência de “a nova geração do humor no feminino” (Galha & Marques, 2020). O artigo enfoca que “há cada vez mais mulheres no humor. São elas que dão piada a Ricardo Araújo Pereira ou que enchem salas de stand-up comedy” (Galha & Marques, 2020). Se nos dias de hoje continuam a ser uma minoria comparativamente com os homens e se, muitas vezes, o seu trabalho aparece dissimulado por se encontrarem a escrever para homens, o certo é que em Portugal têm aparecido mais mulheres a produzir humor.

3. Humor Produzido por Mulheres: Humor Feminino e Humor Feminista

O humor é, portanto, uma forma de discurso. Como explicita Claude Chabrol (2006), “um ato de humor, como qualquer ato de fala, é o resultado da interação que se estabelece entre os parceiros na situação de comunicação e os protagonistas na situação de enunciação” (p. 1-2). Além disso, “o humor afigura-se (…) como uma ferramenta em forma de linguagem. De forma simbólica, o humor transporta mensagens sobre expectativas sociais, interações e interpretações” (Jerónimo, 2015, p. 66).

A alusão que tecemos anteriormente em torno da relação entre humor e mulheres carece igualmente de uma abordagem sobre algumas questões relativas a linguagem.

Desde logo, Caroline Criado Perez (2020) começa o seu livro em torno da temática da invisibilidade das mulheres na sociedade por dizer que “quase toda a história humana de que há registo padece de um grande défice informacional” (p. 13), constatando que “ao falarmos de seres humanos, na verdade, estamos a referir-nos aos homens” (p. 14). Esta problemática não deixa de ser visível no facto de o humor produzido por mulheres ter de ser referenciado enquanto tal e humor produzido por homens já não denota essa necessidade de menção. Dentro da “ordem linguística patriarcal” (Irigaray, 1993, p. 20), “o que é visto, considerado e interpretado como feminino é desvalorizado - porque se lhe associa uma tradicional ausência de poder político e económico” (Barreno, 1985 p. 90). Já “o que é visto, considerado e interpretado como masculino, é valorizado, porque ao masculino se associam o poder político e económico” (Barreno, 1985 p. 90-91).

Também, no âmbito da linguagem, é necessário atender como o humor produzido por mulheres é frequentemente classificado como humor feminista, não sendo necessariamente sinónimos. “Humor feminino” consiste no humor sobre ou por mulheres, não tendo implicações com os movimentos e filosofias feministas: “tal humor pode ridicularizar uma pessoa ou sistema social sem implicar em nenhuma exigência de mudança” (Franzini, 1996, p. 812).

Sendo considerado o humor feminista como “uma parte mais significativa da expressão humorística das mulheres” (Walker, 1988, p. 13), pode assumir duas formas: aquele que desafia subtilmente os estereótipos ou o que confronta mais abertamente as fontes de discriminação e surge, principalmente, em períodos de maior organização na luta pelos direitos das mulheres (Walker, 1988). Na explicitação dada por Nancy Walker (1988), o humor feminino contemporâneo, embora se encontre especialmente associado ao segundo tipo, é um humor que se assemelha ao masculino. Para a autora:

A entrada de um grande número de mulheres na força de trabalho, a taxa de natalidade em declínio e as mudanças nas estruturas familiares trouxeram homens e mulheres para o mundo um do outro o suficiente para que as mulheres escrevessem humor sem uma consciência de género específica. (Walker, 1988, p. 14)

Por outro lado, os estereótipos são um ponto central para o humor. As piadas tendem sobretudo a reproduzir discursos que são veiculados socialmente. Como refere Gail Finney (1994), “a comédia é baseada em experiências, atitudes e valores compartilhados; cria grupos internos e grupos internos gozando de aberrações da norma ou da própria norma; funciona como uma forma de controlo social” (p. 7).

Mas, se podemos afirmar que o humor vai beber muita inspiração a comportamentos padronizados e estereotipados, também se manifesta crucial considerar que assume igualmente as funções de “forjar laços de solidariedade, sociabilidades, reforçar relações de poder e dominação, actuar como instrumento de resistência política e social, dar visibilidade a grupos sociais colocados à margem da sociedade, fortalecer ou, ao contrário, minar padrões estéticos e de moralidade” (Crescêncio, Burkat & Pires, 2020, p. 3).

4. Comédia Stand Up, Media Digitais e a Abertura da Esfera Pública

Os espetáculos de stand up caracterizam-se essencialmente pela presença de uma ou mais pessoas em palco, sem recurso a adornos ou personagens tipicamente teatrais, fazendo uso da sua capacidade criativa e autoral para criação de piadas que sejam inéditas e originais (Sechinato, 2021). Sobre este fenómeno, Juliana Spagnol Sechinato (2021) alerta para a escassez de exploração do cenário emergente da comédia stand up por parte da investigação científica no contexto brasileiro, em comparação com outros países como Estados Unidos, Canadá e Inglaterra. Não podemos deixar de considerar que, por Portugal, existe também um contexto por explorar aprofundadamente deste acontecimento.

No entanto, o momento que é frequentemente considerado catalisador para a popularidade da comédia stand up em Portugal é o surgimento, em 2003, do programa Levanta-te e Ri no canal televisivo SIC. A partir de então, o fenómeno foi deixando de estar centralizado neste programa televisivo, passando a ocupar espaço em bares noturnos, salas de espetáculos e festivais (Alves, 2023).

Por outro lado, os media digitais têm dado novos contornos ao conceito de esfera pública. Surgem como um novo espaço de deliberação e mobilização onde as pessoas têm a possibilidade de produzir e partilhar o seu próprio conteúdo. As redes e as plataformas sociais parecem, assim, constituir os novos “salões e cafés” de que nos falava Habermas (2012) não apenas acessível à classe burguesa, antes sim com um caráter mais universal.

As mulheres encontraram novos espaços de empoderamento, resistência e emancipação: “o meio digital tem facilitado o acesso das mulheres à esfera pública, pois oferece inúmeras possibilidades de participação” (Cerqueira, Ribeiro & Cabecinhas, 2009, p. 114). Essa participação teve igualmente repercussões no âmbito do humor: se até então a produção do humor advinha de meios tradicionais, como a televisão, a rádio, o teatro e o circo, atualmente, e a par das noites de comédia stand up, viu-se surgir uma nova e maior vaga de mulheres humoristas nas redes sociais.

Na confluência entre média tradicionais e novos média, se, por um lado, o “aniquilamento simbólico das mulheres”, na expressão de Gaye Tuchman (2004), pelos media tradicionais era uma realidade para a qual amplamente se alertava, por outro lado, os novos media assomam-se como um mecanismo facilitador no acesso à esfera pública por parte das mulheres.

Neste âmbito, importa igualmente atender à componente da representação, enquanto “parte essencial do processo pelo qual o sentido é produzido e trocado entre membros de uma cultura. Ele envolve o uso da linguagem, de signos e imagens que respondem por ou representam coisas” (Hall, 2016, p. 31). Se críticas têm sido tecidas aos media tradicionais em torno da questão de as mulheres serem “representadas de uma forma distorcida, ou então são invisíveis” (Silveirinha, 2004, p. 25), os novos média oferecem uma vasta possibilidade de participação, onde as “representadas” dos média tradicionais podem agora assumir a posição de “representantes” (Silveirinha, 2004).

Os espetáculos de comédia stand up e os média digitais surgem, assim, como novos palcos para as mulheres que produzem humor.

5. Caso de Estudo

5.1. Percurso Metodológico

Partimos da questão de investigação: como é que as mulheres que produzem humor vivenciam essa experiência em função do seu género e, secundariamente, de que modo os média digitais têm influência nessa componente? Para tal, foram realizadas, durante os meses de fevereiro e março de 2022, entrevistas semi-estruturadas, a 12 mulheres humoristas (via Zoom ou chamada telefónica), com idades compreendidas entre os 26 e os 40 anos. Relativamente ao perfil das pessoas entrevistadas, três exercem a profissão a tempo integral e as restantes nove coadunam a atividade humorística a tempo parcial com outra profissão que constitui a sua principal fonte de rendimento. Quanto ao meio para produção de humor, cinco das humoristas fazem-no apenas através de stand up comedy e as restantes sete coadunam os espetáculos e presenças ao vivo com as redes sociais.

Seguindo a conceitualização de Cleber Cristiano Prodanov e Ernani Cesar de Freitas (2013), a amostra selecionada é não probabilística por acessibilidade, tendo presente que foram as participantes às quais foi possível ter acesso e admitindo também que podem representar o universo que aqui se pretende investigar. Neste âmbito, é de ressalvar que foram notórias as dificuldades em chegar a estas 12 participantes, não só pela falta de sistematização de pessoas humoristas em Portugal, como também pela pouca quantidade de mulheres a exercer a atividade comparativamente com homens.

O roteiro das entrevistas semi-estruturadas norteou-se a partir de três dimensões de base: 1) as perspetivas das participantes sobre a relação entre humor e género; 2) as experiências pessoais das entrevistadas no exercício da atividade humorística; 3) as suas visões sobre o processo de produção nas redes sociais.

Foram disponibilizados e esclarecidos às participantes os termos de consentimento informado e livre da sua participação neste estudo, tendo todas aceitado. Dentro destes termos, estava incluída a garantia do anonimato, pelo que se optou, neste estudo, pelo uso de nomes fictícios de modo a proteger a confidencialidade das pessoas entrevistadas.

Para análise dos dados recolhidos, socorremo-nos metodologicamente de análise temática crítica (Lawless & Chen, 2019). A análise temática, conforme enunciada por Virginia Braun e Victoria Clarke (2006), permite seguir uma abordagem acessível e teoricamente flexível, tendo em conta o objeto de estudo a que supra nos propusemos, enquanto um método qualitativo que possibilita identificar, analisar e interpretar padrões/temas, dentro dos dados recolhidos (Reses & Mendes, 2021).

Na reflexão de Brandi Lawless e Yea-Wen Chen (2019), considerando que o método definido por Virginia Braun e Victoria Clarke abriu portas para ser “flexível o suficiente para ser usado com qualquer estrutura” (p. 93), a análise temática permite a “integração com perspetivas críticas, especialmente como uma abordagem analítica para pesquisas qualitativas que visam objetivos de justiça social” (p. 96). Neste sentido, as autoras propõem um método que resulte dos critérios de recorrência, repetição e contundência de William Foster Owen, aglutinando-se, a esse aspeto, a “referência ao posicionamento da identidade cultural, perguntando assim: “Quem disse isso e porque é que isso importa?”” (Lawless & Chen, 2019, p. 96).

5.2. Resultados e Discussão

A partir das temáticas levantadas nos discursos das entrevistas realizadas, olharemos infra para a identificação das experiências partilhadas pelas mulheres humoristas que participaram no presente estudo, tendo os resultados sido divididos nos cinco pontos que se seguem.

5.2.1. “Por que é que as Mulheres Não são Engraçadas?” e Outros Preconceitos

Sobre “os homens têm mais graça do que as mulheres”, as mulheres entrevistadas consideraram que:

“Sinto terá a ver com o patriarcado no sentido que nós somos educadas ou temos sido educadas para termos algumas características que nos tornem mais sedutoras e menos intimidantes para o sexo masculino. Somos educadas para sermos senhoras, para sermos bonitas, para termos classe.” (Helena)

“Estás constantemente a construir a tua armadura do "levem-me a sério". E às vezes essa armadura desvia o caminho do "deixa cá fazer piadas". Eu acho que um homem que é capaz de fazer muitas piadas é caracterizado como inteligência, e eu acho que é, mas nas mulheres associa-se como uma mulher não muito esperta ou não muito séria.” (Lara)

Como anteriormente já tivemos oportunidade de analisar, as mulheres não eram historicamente consideradas engraçadas, no máximo apreciariam o humor dos homens (Walker, 1988). Para as mulheres entrevistadas, o preconceito em torno de “as mulheres não tem piada” deriva de um contexto social que ditou como as mulheres se devem comportar em sociedade.

Por isso, Nancy Walker (1988) defende que o humor deve ser interpretado com a consciência de que a vidas das mulheres é completamente diferente da dos homens. Seguindo igualmente neste trilho a autora, “com a responsabilidade pela cultura delegada às mulheres, os homens ficaram livres para brincar e gozar, sabendo que as mulheres os colocariam na linha em breve” (p. 42).

A questão referida por algumas humoristas relativamente ao humor ser associado a inteligência apresenta também um cariz de bastante interesse. O humor é considerado frequentemente uma forma de inteligência, nomeadamente “a capacidade do possuidor dessas qualidades de assumir uma nova perspetiva sobre um problema ou situação” (Barreca, 1992, p. 126). O certo é também que historicamente se tentou provar que “a questão dos cérebros e a hipótese da variabilidade eram supostos servir para fundamentar a falta de capacidades intelectuais do sexo feminino” (Amâncio, 1994, p. 18).

Por outro lado, as humoristas entrevistadas relatam que existem determinados comportamentos que são permitidos aos homens e o mesmo já não acontece com as mulheres:

“Isto no geral, não se aplica só no humor, o homem pode ser sempre muito mais porco e muito mais direto e pode falar de todos os temas que é visto como “Ah, ele é uma pessoa corajosa, ele é homem", e infelizmente a mulher não.” (Margarida)

“Há pessoas que ainda dizem que é estranho ouvir uma mulher a dizer asneiras. Há pessoas que dizem que eu não devia ser tão zangada. Eu acredito que isto não vem de uma crítica informada ao meu trabalho, mas vem de uma opinião que a minha atuação devia estar em justa posição com a ideia que se tem da mulher, ou seja, recatada; podes ter graça mas não exageres; uma senhora não faz estas coisas; uma senhora não diz asneiras.” (Luísa)

Daqui emerge também que a questão de “as mulheres francas de alguma forma violam a delicadeza e passividade dos seus eus "naturais" e saem dos seus papéis “apropriados”” (Walker, 1988, p. 140).

Relatos surgiram também no sentido que são exercidas pressões sociais sobre as mulheres que não se refletem nos seus pares masculinos, nomeadamente no que concerne ao seu aspeto visual:

“Não existe esse "mas" quando é um homem atuar. Mas há sempre esse "mas" com uma mulher. Ou porque somos demasiado masculinas, ou porque somos demasiado femininas, ou porque dizemos muitas asneiras ou porque ainda bem que dizemos asneiras, ou porque estamos demasiado bem vestidas ou porque devíamos estar um bocadinho melhor, ou porque as nossas ancas são demasiadas largas e devíamos usar vestido... Isto é uma constante.” (Luísa)

“Eu tenho uma dificuldade na minha vida pelo facto de ser mulher que é ser baixinha e ser gorda. Existe uma imagem que é esperada de uma mulher artista dentro da área do espetáculo que eu não tenho e isso obviamente que é dificuldade. E isto tem a ver também com estereótipos de género. A comédia trata de coisas que estão fora da norma e, portanto, não deveria interessar.” (Luísa)

“Uma das coisas que comentamos entre mulheres é “o que é que eu vou levar vestido?”. É no sentido de que nós subimos a palco e sabemos que vamos ser observadas por aquilo que nós temos vestido. E eu reparo que isso não acontece a um homem. Um homem não pensa no que é que vai vestir quando vai atuar. Mas nós temos de ter esse cuidado porque sabemos que vamos ser um alvo de crítica se estivermos um bocado mais expostas, por parte de quem vê. Portanto, ainda acho que há um bocadinho essa pressão de o nosso visual que tem de ser controlado até porque isso pode ser um ponto até de distração do próprio público e nós não queremos isso e acaba por ser uma pressão desnecessária. Acaba por ser uma forma de preconceito.” (Margarida)

Naomi Wolf (2018) explica como “quando as mulheres abriram brechas na estrutura do poder na década de 1980, os dois aspetos afinal se fundiram. A beleza deixou de ser apenas uma forma simbólica de moeda. Ela passou a ser o próprio dinheiro. (…) mas o mito de beleza se encarregou de atrapalhar cada passo” (p. 505). Ligado à imagem da mulher, encontra-se um ideal associado a uma beleza padronizada que Naomi Wolf (2018) definiu como uma forma de controlo das mulheres, estimulando a competição entre elas. Como relata Juliana Spagnol Sechinato (2021), “não raro, podem se sentir mais confiantes, em um primeiro instante, quanto menos estereótipos femininos sugerirem carregar, em um esforço de neutralizar estigmas de gênero” (p.120-121).

5.2.2. As “Ladies Night” e o “Boys Club

Tendo em conta a experiência de ser-se uma mulher humorista em Portugal, uma das participantes verbalizou:

“Confundem-me muito com outras humoristas. Para algumas pessoas é uma amálgama: “tem vagina e diz piadas”. É um monstro de várias cabeças que não sei muito bem quem é quem.” (Lara)

Esta “amálgama” de que fala esta humorista conduz ainda a outra componente referida por outra entrevistada:

“Quando uma mulher participava num espetáculo qualquer, a mulher tinha obrigatoriamente de ser perfeita. Se lhe corresse mal, era porque as mulheres todas não tinham piada. Se lhe corre bem, era porque aquela tem.” (Luísa)

Um dos problemas reportado por algumas humoristas foi também a existência de noites específicas para mulheres:

“Há uma coisa que me enerva: a maior parte das vezes quando sou convidada para fazer espetáculos de comédia acabam sempre por me inserir quando eu estou em cabeça de cartaz em noites exclusivas de mulheres. O que isso faz automaticamente é fazer aquilo que nós não queremos. É que isso está automaticamente a separar as águas: vocês são mulheres, então vou-vos pôr a fazer noites só de mulheres. Isso não acontece em noite dos homens, não se anuncia “noites só de homens de humor!”. (Margarida)

A existência das designadas “ladies night”, comummente associadas a saídas noturnas, tem sido frequentemente visada enquanto uma forma de discriminação. Entre nós, Paula Cosme Pinto (2017) alerta, num artigo de opinião do jornal Expresso, para “este é aquele tipo de situação comum e aceite por todos, que acarreta várias condutas sexistas. Entre elas, uma que ninguém parece querer ver: a utilização da mulher como chamariz para gerar negócio”.

Por outro lado, e no seguimento do que foi enunciado anteriormente de que não existem “noites só de homens de humor”, foi também elencada a problemática de o humor produzido por mulheres ter de ser referenciado enquanto tal:

“Esta questão de chamarem ao humor feito por mulheres o "humor feminino” e não chamarem ao humor feito por homens "humor masculino" é subcategorizar o humor. Temos o humor e depois temos o humor feminino. São pequenas coisas na linguagem que têm muita importância, sobretudo na forma como as pessoas leem essa comunicação.” (Luísa)

Já tivemos supra oportunidade de brevemente nos debruçarmos sobre as implicações que a linguagem assume neste sentido: o que é masculino é universal e o que é feminino é um nicho (Perez, 2020).

Quanto à relação que estabelecem com os pares masculinos, todas as mulheres reportaram nunca terem sido alvo direto de discriminação, alertando algumas para o facto de que, a existir, acontece de forma dissimulada:

“Se tu questionares "olha, mas tu estás a dizer isso porque eu sou mulher?", é-te automaticamente incutido que é uma coisa que é dentro da tua cabeça: "a gente não pode dizer nada que vocês acham que é discriminação”. (Luísa)

“Poucas pessoas te dizem que o problema é tu seres gaja, mas eu sei que oiço bocas que derivam daí. Coisas nomeadamente sobre a minha voz. Há assim um tipo de ofensa que tu percebes que está ligada com o teu género, apesar de ninguém te dizer diretamente que está ligada com o género.” (Lara)

Houve quem também afirmasse que nunca sofreu discriminação em função do seu género:

“Em relação aos colegas, não tenho nada para me queixar. Quando nós estamos a trabalhar e há um crescimento e resultados, não importa assim tanto se é mulher ou não, sempre fui tratada como comediante, independentemente do género, o importante é se estou a fazer rir ou não, e não tenho sentido isso. Mas pode ser dos sítios onde eu atuo.” (Teresa)

“Sinto que, na comunidade de humoristas, eu tenho uma experiência muito particular, eu oiço as minhas colegas e sinto que há muitas que sentem discriminação, que não são valorizadas e existe algum preconceito ao tipo de humor que pode ter uma perspetiva mais feminina. Felizmente, não é essa a minha experiência. Sinto que sou bastante valorizada ou igualmente valorizada relativamente aos meus colegas de género masculino e não sinto nenhum tipo de preconceito quanto ao tipo de humor que eu faço.” (Helena)

Sobre a convivência entre colegas,

“Não entras na conversa do "Boys Club", ninguém está à vontade para falar contigo e, portanto, ninguém está à vontade para te convidar para coisas. Tudo depende, haverá mulheres que não sentirão isto. Tem influência o tipo de humor que fazes e o tipo de mulher que és fora do palco.” (Maria)

Uma das justificações encontradas para tal fenómeno poderá encontrar concordância em Regina Barreca (1992), crendo que o facto de as pessoas em redor de uma rapariga que usa humor ficarem nervosas, advém do facto de ela não estar disposta a aceitar o seu papel de espectadora passiva (p. 107).

5.2.3. O Humor das Mulheres Aborda Apenas “Problemas Femininos”?

Relativamente aos temas que são levantados no humor produzido por mulheres, algumas participantes procuraram desbravar mitos que sentem que se encontram associados:

“Vou a outro mito: as mulheres falam sempre da mesma coisa. Eu dei-me ao trabalho um dia de ver vários espetáculos de vários humoristas masculinos e há temas que são transversais a todos eles. Há temas que são repetidos à náusea pelos comediantes masculinos, mas não há ninguém a apontar isso. Eu vejo uma variedade de temas muito grande quando são mulheres em palco, mas esse mito ainda existe.” (Luísa)

Na teorização de Regina Barreca (1996), o humor abre discussão: “o melhor humor permite opinião e refutação. Também permite alegria, compaixão e uma nova maneira de ver o mundo muito antigo” (p. 10). É sobre “uma nova maneira de ver o mundo” que as mulheres humoristas entrevistadas consideram ser o seu o papel: “O que eu acho que as mulheres trazem ao humor são temas diferentes, que eu não acho que tenham de ser necessariamente femininos.” (Mafalda)

O humor produzido por mulheres traz universalidade no sentido de que assenta nas experiências que a pessoa humorista vivencia:

“Eu acho que o papel das mulheres no humor em Portugal ou em qualquer outro lado é abrir o leque de temas que normalmente se encontram em projetos de humor. Porque, então quando as pessoas me perguntam o que é o humor no feminino, as piadas são a tua perspetiva da vida e a tua perspetiva da vida está condicionada, e não digo no mau sentido, está formatada por aquilo que são as tuas experiências e obviamente as minhas experiências de vida são muito diferentes por eu ser mulher do que se eu tivesse nascido homem.” (Lara)

Como diria Nancy Walker (1988), “seja na forma de sátira aberta ou de maneiras mais subversivas, as mulheres riram da acusação de que são "sem sentido", e através desse riso falaram umas com as outras o absurdo do seu dilema comum” (p. 99).

5.2.4. “Um Quarto que Seja Seu”: Mulheres Humoristas e Remuneração

No ensaio Um Quarto Que Seja Seu, Virginia Woolf (2019) debateu o facto de “uma mulher tem de dispor de dinheiro e de um cantinho seu, para poder escrever ficção” (p. 18) Neste sentido, sobre a dificuldade de se inserirem no meio e de exercerem a área, as humoristas entrevistas consideram:

“Em relação a chegar lá, não é difícil. É mais fácil no início porque as próprias pessoas dos sítios querem muito ter uma mulher, porque fica bem e querem ter uma noite de mulheres. Mas sentes que és o cãozinho que eles trouxeram para trazer piada aqui.” (Maria)

“Em termos de humor, finalmente passado algum tempo já começo a ter mais algum rendimento. Ainda tenho muito mais para caminhar para conseguir viver do humor, nem sei se, muito sinceramente, fazendo uma avaliação, se algum dia vou conseguir viver só do humor.” (Margarida)

Para a maioria das pessoas entrevistadas, o exercício desta profissão constitui um trabalho alternativo, exercido a tempo parcial a par da atividade profissional que exercem integralmente e que constitui a sua principal fonte de rendimento e sustento.

O declínio da “Mística Feminina”, de que nos falava Betty Friedan (2020), conduziu a que as mulheres ingressassem no mundo do trabalho. Este ingresso no mundo do trabalho veio igualmente acompanhado de desigualdades em função do género:

“Se quisessem que me pagassem, sentiria alguma dificuldade. Toda a gente sente. Mas eu acho que é mais fácil ganhar 100€ sendo um gajo medíocre do que mesmo que sejas uma mulher minimamente boa começares a ganhar dinheiro com comédia. Muito difícil.” (Maria)

“Houve uma vez que me contrataram para um espetáculo, acordaram um preço que era baixo e, no final, disse-me que me pagava o mesmo que aos outros comediantes porque eu merecia e tinha feito um bom trabalho, e só aí é que eu descobri que me iria pagar menos à partida por eu ser mulher.” (Luísa)

Como denotado pelas entrevistas, o humor não escapa à diferença salarial existente em Portugal entre Homens e Mulheres. Como menciona um estudo realizado pela Comissão para a Igualdade no Trabalho e no Emprego (2015):

Frequentemente, as mulheres ganham menos que os homens para fazer trabalho igual ou de valor igual. As causas para as disparidades salariais entre homens e mulheres são múltiplas, complexas e muitas vezes interligadas, podendo incluir fatores estruturais, legais, sociais, culturais e económicos, como sejam as escolhas e as qualificações escolares e profissionais, a ocupação profissional, o sector de atividade, as interrupções na carreira, a dimensão da empresa onde se trabalha, bem como o tipo de contrato de trabalho e a duração da jornada.

5.2.5. Redes Sociais Online na Produção do Humor

Nas palavras de uma das entrevistadas, as redes sociais funcionam como “impulsionadoras da venda de bilhetes” (Lara). Um dos pontos mais destacados na importância que as redes sociais assumem na produção do humor foi a visibilidade e a promoção que podem trazer para o trabalho que fazem:

“Se não tivesse o Instagram e o Facebook, não sabia como podia ramificar, como é que podia passar a palavra. Eu, às vezes, até penso "eu gostava de poder largar isto", mas eu não posso. Porque eu não tenho outro meio de comunicar aquilo que faço. Eu não vou para a televisão, eu não vou para a rádio.” (Margarida)

Mesmo as entrevistadas que não produzem humor através das redes sociais salientam, à semelhança das restantes, a importância que as redes sociais têm para impulsionar e publicitar espetáculos ao vivo. No entanto, foi unânime entre as entrevistadas a preferência por estar perto do público.

Além disso, foi sublinhado por algumas humoristas a importância que o número de seguidores nas redes sociais tem. Neste seguimento, foi traçado um pensamento em torno de como esse número atualmente tem influência no acesso aos meios de comunicação de tradicionais:

“As televisões, as rádios e os meios tradicionais arriscam muito pouco, muito pouco. Às vezes, oiço “quem é que está aí de malta nova para começar a fazer reportagens humorísticas?”, a primeira coisa que vão ver é o número de seguidores que tu tens nas redes sociais. Mesmo para guionistas, já me aconteceu sugerir pessoas e a pergunta ser “mas esta pessoa não tem redes sociais? Como é que eu sei que é boa?”. As redes sociais agora são o teu casting, quer tu queiras, quer não.” (Lara)

Outro fenómeno frequentemente reportado foi referente ao facto de, através dos media digitais, o processo de surgimento de humoristas estar a acontecer de maneira inversa à que anteriormente se passava: “Acho que há cada vez mais um fenómeno de humoristas de media, que são humoristas que vivem essencialmente das redes sociais e depois é que passam para ao vivo.” (Margarida)

Quanto a questões de género, tendo por base as considerações supra mencionadas, as humoristas entrevistadas consideram que as redes sociais contribuíram para um maior surgimento de mulheres humoristas em Portugal mas também para a criação de novas formas de produzir humor:

“As redes sociais foram muito importantes para mostrar novas formas de fazer humor e dentro dessas novas formas acho que há humoristas que conseguiram ganhar terreno. E é graças a essas humoristas que depois em palco pode haver mais aceitação.” (Ana)

A par disso, salientou-se igualmente a vertente importante que assumem na representação:

“Eu lembro-me de ter pensado "ah giro, as mulheres também podem fazer isto”. Foi giro ver que não é mundo só de homens, as mulheres também o podem fazer. É importante ver que existem.” (Teresa)

Por outro lado, o “lado negro, muito negro” das redes sociais, como a própria designou, foi levantado por uma das humoristas:

“Acho também que esse escrutínio que tu tens é maior nas mulheres do que nos homens. Se ela põe uma foto a sair à noite, os comentários são “então, a tua filha ficou com quem?”. As redes sociais vêm com um escrutínio em tempo real, que lasca a saúde mental de qualquer pessoa, e as mulheres têm de estar preparadas para o xingamento que vão receber, dez vezes pior que os homens. Eu acho que não conheço nenhuma mulher com alguma projeção que nunca tenha recebido ameaças de violação nas redes sociais. Nós todas já recebemos mensagens de “tu devias era levar com ele”. (Lara)

Na medida em que tem sido reportado que as relações desiguais entre homens e mulheres são uma realidade histórica e sistémica na humanidade, essa realidade é igualmente transposta para o mundo digital. As plataformas digitais constituem igualmente um lugar de perpetuação de violência contra as mulheres (Henry & Powell, 2014) e disseminação de estereótipos de género.

6. Conclusão

“Eu sou a "mau feitio" que acho que os homens me andam a perseguir. Não, eu não acho nada que os homens me andam a perseguir. O que eu acho é que é completamente disfuncional do ponto de vista cognitivo assumirmos que a sociedade tem desigualdades do ponto de vista do género mas chegamos ao humor e é tudo uma maravilha.” (Luísa)

Com este estudo, pretendemos mostrar como é que as mulheres que produzem humor vivenciam essa experiência em função do seu género. Desde logo, uma das dificuldades com que nos deparámos, na realização da presente investigação, prendeu-se com o esforço de chegar às 12 mulheres humoristas que foram entrevistadas. Ao contrário de outros países, como é o caso britânico onde o site Chortle[1] contém uma lista de todas pessoas humoristas que atuam no Reino Unido, em Portugal não existe uma lista nem uma sistematização de quantas pessoas produzem humor no país. Como constatámos já anteriormente, citando Caroline Criado Perez (2020), o “défice informacional” e a falta de dados que reportem à existência de mulheres humoristas em Portugal foi amplamente sentida na conceção da presente investigação. À semelhança de Emma Speer (2017), deparámo-nos com a adversidade que “uma busca no Google por “comediante” traz milhões de nomes – de homens” (p. 3). Esta é um primeira nota que não poderíamos deixar de sublinhar no contexto português.

Por outro lado, não deixa de ser interessante olharmos para o facto de a maioria das entrevistas (nove) exercerem o papel de humoristas a tempo parcial. Este fenómeno não deixa de ilustrar as críticas tecidas por algumas delas no que concerne à remuneração e à falta de oportunidades.

Para as humoristas portuguesas entrevistadas, o mito que perpetua que “os homens são mais engraçados que as mulheres” advém de um contexto social e educacional, onde, a seu ver, as mulheres sempre foram educadas para assumir um papel mais passivo e recatado que ditou como se devem comportar socialmente. Além disso, um dos temas que frequentemente visaram foi a diferença entre o que é permitido no humor masculino e no humor feminino: enquanto certos temas trazidos por homens são aplaudidos, os mesmos assuntos abordados por elas são alvo de críticas. Outra das diferenças que reportaram, relativamente aos seus pares masculinos, foi a preocupação com a imagem: reconhecem que têm a necessidade de ter um cuidado maior com o seu aspeto visual por saberem que estão sujeitas a um escrutínio maior pelo facto de serem mulheres.

Quanto ao humor produzido por mulheres e aos temas sobre que se debruçam, a questão de que as mulheres são enquadradas todas num “humor feminino”, onde não divergem umas das outras, foi precisamente contrariada pelas humoristas entrevistadas: se existem alguns pontos onde encontram concordância e semelhanças pelas vivências que experienciam em função do seu género, também é certo que as suas experiências e a maneira como sentem e vivem essas experiências são distintas. As humoristas entrevistadas expressaram uma necessidade de marcar a sua individualidade e de como cada uma produz aos seus conteúdos com base nas suas perceções individuais. Neste sentido, foi também exteriorizado o desconforto que sentem na existência de noites exclusivas para humoristas mulheres. No seu entendimento, estes mecanismos contribuem para subcategorizar o humor que é produzido por elas e para perpetuar mecanismos de discriminação.

Secundariamente, a par de uma nova e maior vaga de humoristas ter recentemente surgido e havendo um nexo de causalidade associado à abertura da esfera pública feminina através dos média digitais, procurou-se perceber quais os principais pontos que as entrevistadas denotavam quanto à influência que os média digitais exerciam.

O tema mais recorrente prendeu-se com o facto de as redes sociais serem um meio de excelência para a promoção de espectáculos ao vivo. As humoristas entrevistadas, quer façam uso das redes sociais como meio para produção de humor, quer não, sublinharam a importância que estas assumem para se ganhar notoriedade.

Outras questões afloradas nesta temática relacionaram-se com o facto de os meios digitais começarem a inverter o processo de produção, no sentido de denotarem que atualmente as jovens humoristas tendem primeiro a aparecer no digital e só posteriormente passam para os palcos. Além disso, foi igualmente evidenciada a importância que o número de seguidores tem para o acesso aos meios de comunicação tradicionais.

Foi, ainda, destacado o facto de as redes sociais contribuírem para haver mais mulheres a produzir com novas formas de o fazer e ainda a questão de contribuir para uma maior representação das mulheres através do prisma “existem mulheres no humor”. A par destas temáticas, não deixou de ser destacado que o discurso de ódio frequentemente presente nas redes sociais acaba por afetar mais as mulheres humoristas que os homens.

Destarte, na enunciação de Nancy Walker (1988), o humor produzido por mulheres vem desafiar os pressupostos básicos que serviram de justificação à sua subordinação pública e privada. Reduzidas a seres passivos e emocionais, as mulheres vieram mostrar que são assertivas e perspicazes e que, sim, têm piada. É precisamente isso que as humoristas entrevistadas procuram mostrar: elas têm piada.

Não deixa de ser evidente que o humor por mulheres apresenta uma relação dicotómica entre a constante consideração da inferioridade e subordinação das mulheres, pelas dificuldades que enfrentam no exercício da profissão em função do seu género, mas também um conjunto de testemunhos que denotam um “espírito de sobrevivência numa cultura sexista” (Walker, 1988, p. 183), desbravando mitos que lhes continuam inerentemente associados.

Por fim, não podemos deixar de sublinhar que existe, ainda, um longo percurso a trilhar no que concerne à investigação em torno desta temática. Os estudos científicos que abordam a relação entre humor e género são escassos em Portugal, havendo ainda muito por desbravar neste campo. Desta forma, com esta investigação, pretendemos abrir caminho para que novas questões possam não só ser abordadas, como também aprofundadas no futuro.

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Notas

[1] https://www.chortle.co.uk/
Editoras: Ana Filipa Oliveira e Rita Basílio Simões

Autor notes

Inês de Sousa Rua Santos Costa é licenciada em direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (FDUC) e Mestre em ciências jurídico-Forenses pela FDUC e em jornalismo e comunicação pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra (FLUC). Atualmente, é doutoranda em ciências da comunicação na FLUC.
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