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Ditos/Não-Ditos: Investigando as Controvérsias Discursivas da Plataforma Zoom
Said/Unsaid: Exploring the Zoom Platform’s Discursive Disputes
Dicho/No dicho: Investigando las Controversias Discursivas de la Plataforma Zoom
Revista Comunicando, vol. 11, núm. 2, e022012, 2022
Associação Portuguesa de Ciências da Comunicação

Comunicação e Cultura Digital

Revista Comunicando
Associação Portuguesa de Ciências da Comunicação, Portugal
ISSN: 2184-0636
ISSN-e: 2182-4037
Periodicidade: Semestral
vol. 11, núm. 2, e022012, 2022

Recepção: 31 Março 2022

Aprovação: 01 Julho 2022

Este trabalho encontra-se publicado com a Licença Internacional Creative Commons Atribuição 4.0. Os/as autores/as mantêm os direitos de autor, mas concedem à Revista Comunicando o direito de primeira publicação. Todos os trabalhos são licenciados com uma Licença Creative Commons - Atribuição 4.0 Internacional.

Este trabalho está sob uma Licença Internacional Creative Commons Atribuição 4.0.

Resumo: Em seus discursos e posicionamentos institucionais, companhias buscam estabelecer suas plataformas como aplicações digitais intermediárias, facilitadoras das mais diversas atividades humanas. Contudo, a partir do lugar de destaque que conquistaram na sociedade contemporânea, as plataformas, na prática, são incapazes de manter a postura de neutralidade, considerando a dimensão política, jurídica e ideológica de seus atos, normas e estratégias de moderação de conteúdos. Assim, o presente estudo objetiva analisar as divergências entre o que plataformas expressam institucionalmente e o que provocam a nível material, como consequência de suas diretrizes de governação – fundamentalmente baseadas em perspetivas de mundo específicas, orientadas ao lucro e capazes de suscitar riscos à liberdade de expressão. Para atingir tal objetivo, com base em revisão bibliográfica, pesquisa documental e análise de conteúdo, propomos observar mais aproximadamente a plataforma de videoconferências Zoom, bem como as polémicas e escândalos protagonizados pela companhia durante a pandemia da COVID-19. Assim, ao contrastar posicionamentos institucionais e efeitos materiais de termos de serviço, identificamos o que denominamos como controvérsias discursivas no cerne da atuação da plataforma Zoom – momentos de disparidade entre o que é comunicado e o que é efetivamente realizado em termos de moderação de conteúdo, desde os casos relacionados à invasão de privacidade de utilizadores à censura de ativistas.

Palavras-chave: Controvérsias Discursivas, Plataforma, Zoom, Termos de Serviço, Liberdade de Expressão.

Abstract: Through institutional discourses and statements, companies aim to establish their digital platforms as intermediary applications, improving a variety of human activities. Nevertheless, considering that platforms have conquered a prominent place in contemporary society, they are unable to maintain a neutral stance, in regard to the political, legal and ideological dimension of their practices, norms and moderation strategies. Thus, the present study aims to analyze the controversies between what are institutionally expressed by digital platforms and the consequences, at a material level, of their governance guidelines – essentially based on specific, profit-oriented perspectives and biases, which effectively endanger freedom of speech. To reach our goals, with the aid of bibliographic review, document research and content analysis methodologies, we intend to take a closer look at Zoom’s videoconferencing platform and at the controversies and scandals centered around the company during the COVID-19 pandemic. Therefore, when contrasting the institutional positions and the terms of service material effects, we identify what we call discursive disputes in the heart of Zoom's platform – moments of disparity between what is communicated and what is effectively carried out in terms of content moderation, ranging from cases related to the invasion of users’ privacy to the censorship of activists.

Keywords: Discursive Disputes, Platform, Zoom, Terms of Service, Freedom of Speech.

Resumen: En sus discursos y posiciones institucionales, las empresas buscan establecer sus plataformas como aplicaciones digitales intermediadoras, facilitadoras de las más diversas actividades humanas. Sin embargo, desde el lugar destacado que han conquistado en la sociedad contemporánea, las plataformas, en la práctica, son incapaces de mantener una postura neutral, considerando la dimensión política, jurídica e ideológica de sus actos, normas y estrategias de moderación de contenidos. Así, el presente estudio tiene como objetivo analizar las divergencias entre lo que expresan institucionalmente las plataformas y lo que provocan, a nivel material, como consecuencia de sus lineamientos de gobernanza – basados fundamentalmente en perspectivas específicas del mundo, orientadas a las ganancias y capaces de generar riesgos a la libertad de expresión. Para lograr este objetivo, a partir de una revisión bibliográfica, investigación documental y análisis de contenido, proponemos aproximarnos a la plataforma de videoconferencias Zoom, así como a las polémicas y escándalos protagonizados por la empresa durante la pandemia del COVID-19. Así, al contrastar las posiciones institucionales y los efectos materiales de los términos de servicio, identificamos lo que llamamos de controversias discursivas en el centro de actuación de la plataforma Zoom – momentos de disparidad entre lo que se comunica y lo que se hace efectivamente en términos de moderación de contenidos, a partir de casos relacionados con la invasión de la privacidad de los usuarios y la censura de activistas.

Palabras clave: Controversias Discursivas, Plataforma, Zoom, Términos del Servicio, Libertad de Expresión.

1. Introdução

É sintomático da capilaridade alcançada pela plataforma de videoconferências Zoom durante a pandemia da COVID-19, que a aplicação tenha sido o canal escolhido para hospedar reuniões entre o presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, e congressistas estado-unidenses, durante ofensiva russa sobre solo ucraniano, em março de 2022. Convocadas para sustentar pedidos de imposição de maiores sanções à Rússia, bem como demandar apoio militar mais amplo (Malveaux et al., 2022), estas videoconferências não foram as únicas relacionadas ao contexto do ataque de Moscovo contra Kiev: a plataforma também foi utilizada para treinamentos e aperfeiçoamentos de cirurgiões ucranianos na zona de guerra (Janes, 2022).

Exemplos como estes são significativos por dois motivos. Em primeiro lugar porque indicam o astronómico crescimento da Zoom Video Communications durante a pandemia, quando sua plataforma se tornou o recurso tecnológico central para manutenção de relações sociais, trabalhistas e educacionais em regime de quarentena[1] – ainda que o decréscimo do número de casos e a expansão das vacinas tenham aplacado o crescimento da companhia (Jacob, 2022). Em seguida, porque os casos supracitados evidenciam os inerentes laços entre tecnologia e política, considerando que, na contemporaneidade, o poder – ou a capacidade de influência assimétrica de um ator sobre outro – é progressivamente moldado, efetivado e reconfigurado no “reino da comunicação” (Castells, 2019, pp. 83–84)[2].

Para compreender os poderes entranhados no cerne de softwares e aplicações computacionais como a plataforma Zoom, não basta somente ressaltar a localização geográfica em si da empresa detentora, sediada no Vale do Silício, epicentro da indústria tecnológica e mediática do Ocidente; nem tampouco enumerar os motivos pelos quais a companhia largou na frente de suas concorrentes na pandemia, incluindo seu modelo de negócios e a facilidade de uso da plataforma (Furtado, 2021a). É preciso, sobretudo, mergulhar na tecnologia para, a partir daí, evitar determinismos críticos e/ou laudatórios, observando as relações que a compõem (Lemos, 2015, p. 30). É assim que examinaremos os rastros deixados por aplicações platafórmicas, objetos computacionais utilizados para gerar lucro sobre as informações derivadas dos processos que facilitam – companhias tão distintas quanto a Google e a Monsanto são detentoras de plataformas (Srnicek, 2017, capítulo 2).

Neste estudo sobre a plataforma Zoom, observaremos mais propriamente como o poder é exercido a nível do discurso – em outras palavras, enfatizaremos a dissonância entre o que é institucionalmente expresso pela empresa criada pelo executivo sino-americano Eric Yuan e aquilo que é tornado visível pelos escândalos de privacidade e censura nos quais a companhia se viu envolvida recentemente. Se, por um lado, a Zoom promete auxiliar seus clientes a “expressar ideias, conectar-se com os outros, e construir rumo a um futuro cujas fronteiras são a sua imaginação” (“Kit de mídia”, 2021, para. 1), por outro, as polémicas enfrentadas pela companhia lançam sombras inquestionáveis sobre seus valores e pretensões (Furtado, 2021a). Em nossos termos, momentos dissonantes como estes, entre o dito e o não-dito, serão chamados de controvérsias discursivas.

Estas divergências, de fato, decorrem da conceção em si das plataformas, termo cuja semântica posiciona detentoras de aplicações como Zoom, Hangouts e Teams de maneira a potencializar a busca por lucros futuros e atuais; uma relação confortável no que se refere à legislação, benéfica a elas ou não; e o desenvolvimento de “um imaginário cultural onde seus serviços tenham lugar” (Gillespie, 2010, p. 348). Assim, ainda que palavras-chave como “ideias”, “conexão”, “futuro” e “imaginação” sejam apropriadas pela Zoom, por exemplo, é fundamental ter em mente que a empresa visa o lucro – ao não enfatizarmos o pendor comercial de uma companhia como a Zoom Video Communications, a despeito da aparente trivialidade, corremos o risco de permitir que seus interesses mais “íntimos” permaneçam ocultos (Havens & Lotz, 2017, p. 49), velados por discursos de potencialização da sociabilidade humana, por exemplo.

No próximo tópico, portanto, empreenderemos uma sucinta revisão da bibliografia dos estudos de plataforma – eminentemente observando a questão dos termos de serviço e da moderação em plataformas digitais, um aspeto

essencial, constitutivo, definidor. As plataformas não somente não podem sobreviver sem a moderação, como também não são plataformas sem ela. A moderação está lá desde o início, e sempre; ainda assim precisa ser amplamente desencorajada, escondida, em parte para manter a ilusão da abertura das plataformas e em parte para evitar responsabilidades legais e culturais. Plataformas encaram o que pode ser uma contradição irreconciliável: elas são representadas como meras condutoras e são fundamentadas pela escolha do que seus usuários veem e dizem. […] Não há posição de imparcialidade. (Gillespie, 2018, pp. 21-22)

Estabelecidas as bases conceituais do presente estudo, analisaremos algumas polémicas envolvendo denúncias de censura e cerceamento à liberdade de expressão contra a Zoom. Ao compreender detentoras de plataformas não como intermediárias, mas como reguladoras do acesso à informação e sua disseminação em ambientes digitais através de acordos privados (Venturini et al., 2016, pp. 19-20), nosso intuito é demonstrar o retorno, na contemporaneidade digital, da proposição de Michel Foucault (1971/1999): o discurso “não é simplesmente aquilo que manifesta (ou oculta o desejo); é, também, aquilo que é o objeto do desejo […] aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual nos queremos apoderar” (p. 10).

2. Revisão Teórica

Para desarticular a suposta “imparcialidade” das plataformas e seus termos de serviço, um caso ocorrido em 2016 é exemplar. À época, um jornalista norueguês, através de sua conta no Facebook, decidiu montar um portfólio de fotografias representativas da história das guerras. Dentre os registos escolhidos estava “The Terror of War”, retrato literal dos efeitos das bombas de napalm estado-unidenses na pele de uma nua e aterrorizada criança durante a Guerra do Vietname. Ao ser publicada na rede, a foto foi imediatamente excluída sob a justificativa de violação dos termos do Facebook contra publicação de conteúdos sensíveis e/ou violentos; a partir daí, iniciou-se uma contenda mediática entre a Meta – empresa de Mark Zuckerberg, detentora do Facebook, Instagram e Whatsapp – e diversos jornais ao redor do mundo, que acusaram a companhia de censura. No fim das contas, a empresa capitulou, readmitindo a fotografia (Gillespie, 2018, pp. 1–5).

Polémicas como esta estão inscritas no ADN das plataformas, a despeito do posicionamento progressivo, igualitário e neutro adotado pelas companhias detentoras enquanto “meras” facilitadoras de interações humanas (Gillespie, 2010, pp. 351–352): tais escândalos, de fato, são resultado direto dos termos de serviço e das normas de governação de plataformas. Pois, enquanto contratos pseudojurídicos de difícil compreensão e passíveis de alterações constantes, os documentos técnicos das plataformas não apenas definem as condições de prestação de serviço, como também impõem normas e valores particulares no que diz respeito à privacidade de seus utilizadores, instituindo privilégios para as provedoras sobre seus clientes (van Dijck et al., 2018, pp. 11–12). Em outras palavras, termos de serviço formam um modelo de governação

que regula questões como propriedade intelectual e que, de forma estratégica, tenta proteger as plataformas de atitudes perniciosas praticadas por seus usuários. […] Temas diferentes e complexos como violência, obscenidade, assédio, discurso de ódio, atividades ilegais – uso de drogas ilícitas, por exemplo – e auto-mutilação – incluindo suicídio – são mencionados em documentos genéricos que tentam não contradizer a retórica de neutralidade e liberdade sustentada pelas plataformas. (D’Andréa, 2020, p. 42)

Escritos em linguagem de complexa descodificação e repletos de conceitos técnicos (Venturini et al., 2016, p. 95), estes documentos são baseados na lógica do notice and consent (avisar e consentir, em tradução livre), concedendo, na teoria, agência aos clientes de plataformas quanto à expressão de suas autonomias individuais e à proteção de seus dados (Furtado, 2021b). Contudo, as diretrizes de governação raramente são lidas e/ou compreendidas; e mesmo quando são, na eventualidade do contratante não concordar com os termos propostos, a única opção será “não desfrutar importantes produtos e serviços online (…), enfrentando elevados custos sociais na medida em que esses produtos e serviços penetram, cada vez mais, a vida social e as dinâmicas político-económicas dos cidadãos” (Mendes & Fonseca, 2020, pp. 508–509).

Trata-se, portanto, de uma estratégia “pegar ou largar” que denota que o consentimento e a agência supostamente assegurados na fundação dos termos de serviço não são reais ou efetivos, instituindo uma relação de poder assimétrica que anula a oportunidade de negociação dos contratantes – estes, em suma, só podem usufruir dos serviços de uma dada plataforma se aceitarem imposições unilaterais (Venturini et al., 2016, pp. 23–24). Dito de outro modo, a supracitada lógica do consentimento configura-se na realidade como uma espécie de ficção, já “que o indivíduo carece de efetiva autonomia decisória para se proteger dos possíveis perigos e danos à sua personalidade” (Mendes & Fonseca, 2020, p. 516). Em conclusão, ao mesmo tempo em que alicerçam o discurso “platafórmico” de neutralidade, abertura e objetividade, diretrizes de governação operam como mecanismos de regulação exercidos de modo distribuído e não coercitivo (d’Andréa, 2020).

Mais profundamente, termos de serviço expressam valores económicos e sociais, impactando o nível “microscópico” dos consumidores individuais, bem como posicionamentos políticos e ideológicos no estágio “macroscópico” da geopolítica contemporânea, sobretudo em uma ordem mundial dominada tanto por aplicações estado-unidenses (van Dijck et al., 2018, pp. 8–9), quanto chinesas (Punathambekar & Mohan, 2019).

Localizar tais infraestruturas em um contexto global, mas sobretudo nacional, nos permite observar na prática como as questões económicas, tecnológicas, culturais e sociais são intimamente imbricadas (Havens & Lotz, 2017); no caso das plataformas digitais estado-unidenses, verifica-se que as mesmas são amparadas pela secção 230 da lei de telecomunicações local – originalmente desenvolvida para abarcar as operações de companhias telefónicas –, que determina que intermediários do sistema de comunicação não podem ser responsabilizados pelos conteúdos emitidos por seus clientes ao mesmo tempo em que confere poder de monitoração sobre os mesmos a tais empresas.

Esta oscilação entre a proteção à liberdade de expressão e a condição de moderação outorgada às companhias do ramo possibilita a construção dos termos de serviço em uma “linguagem clássica jurídica, criada para proteger o provedor do serviço de quaisquer danos ao mesmo tempo em que confere a ele o maior poder regulatório” (Gillespie, 2018, pp. 30–31).

O caso da remoção da fotografia “The Terror of war” pelo Facebook mostra-se mais uma vez exemplar neste ponto: se, por um lado, a Meta foi implacável em relação à proibição da publicação[3], por outro, a companhia foi conivente com a disseminação de notícias falsas que influenciaram a eleição presidencial dos Estados Unidos em 2016. “Em outras palavras, as práticas de moderação das plataformas constituem um intrincado equilíbrio na corda bamba entre diferentes atores, interesses e agendas” (van Dijck et al., 2018, pp. 44–45), fato que por si só evidencia a ilusão da imparcialidade “platafórmica”.

No entanto, em um contexto onde plataformas reformatam progressivamente os contornos do discurso público (Gillespie, 2018, p. 23), as práticas de moderação e os termos de serviço reforçam a naturalização dos serviços “platafórmicos” como elementos quotidianos, aprofundando a opacidade inerente a tais operações (d’Andréa, 2020). Ainda, garantem que as detentoras exerçam poderes de veto e censura sem perder a aparência de zeladoras do bem comum, reforçando seus valores de imparcialidade, igualdade e objetividade perante novos consumidores, investidores, anunciantes e a opinião pública em geral (Gillespie, 2018, pp. 5–6). Por isto, devemos atentar para o fato de que, na prática, as táticas de moderação e as normas de governação instituem o exercício efetivo de “uma forma de soberania sobre as redes”, fomentando censura, vigilância em massa e outras formas de intrusão (Venturini et al., 2016, pp. 20–22).

Em conclusão, ao analisarmos os termos de serviço em suas entrelinhas opacas e em seus efeitos materiais podemos identificá-los como instrumentos que expõem os princípios fundadores das plataformas (Gillespie, 2018, p. 71) ao protegerem as detentoras de escrutínios mais profundos. Portanto, é fundamental que evitemos abordagens técnico-deterministas que contribuem para que as plataformas operem fora de enquadramentos legais “estabelecidos para organizações de media eletrónica; (…) estabelecidos sobretudo devido às significativas dimensões políticas e culturais de suas operações” (Napoli & Calpan, 2018, pp. 155). Pois, mais do que refletir a sociedade na qual se inserem, plataformas produzem as estruturas sociais nas quais vivemos (van Dijck et al., 2018, p. 2).

Ainda que não criem conteúdos – justificativa que as detentoras de plataformas empregam para evadir responsabilidades jurídicas aplicadas a companhias mediáticas “tradicionais” – plataformas impactam diretamente os conteúdos veiculados em seus sistemas, seja através de métodos de distribuição, exibição e/ou redução de visibilidade (Napoli & Caplan, 2018, p. 148). Também se faz necessário ressaltar que a proporção tomada por detentoras de plataformas institui um tipo de “contrato implícito” com o público em geral, considerando que plataformas habitam uma posição de responsabilidade, a despeito da lei e das construções discursivas de suas diretrizes de governação, o que deveria obrigá-las a responder por suas práticas de moderação de conteúdos (Gillespie, 2018, pp. 208–209).

Com esta revisão teórica, esperamos ter demonstrado que a atuação de uma detentora de plataformas, o uso de seus serviços e as controvérsias geradas na zona cinzenta entre o que é institucionalmente expresso e aquilo que é efetivamente operado, nos permitem subverter os discursos e identificar, no âmago do “debate digital”, algumas das características políticas e económicas (Morozov, 2018) do ecossistema de plataformas, ambiente emaranhado em paradoxos que

parece igualitário, mas é hierárquico; é quase inteiramente corporativo, mas aparentemente serve aos valores públicos; parece neutro e agnóstico, mas sua arquitetura carrega um conjunto particular de valores ideológicos; seus efeitos parecem locais, enquanto seu escopo e seu impacto são globais […]. (van Dijck et al., 2018, p. 12)

3. Metodologia

Para examinar as controvérsias discursivas da Zoom, utilizaremos o recurso da pesquisa documental de fontes primárias – no caso, documentos técnicos institucionalmente emitidos pela Zoom Video Communications; e notícias que dão conta dos escândalos envolvendo privacidade de dados e censura à liberdade de expressão nos quais a companhia esteve envolvida entre março e outubro de 2020. Optamos, por um lado, pela pesquisa documental dos produtos dos noticiários para contextualizar histórica, social e culturalmente a discussão ora empreendida (Sá-Silva et al., 2009, p. 2). Por outro, no caso dos termos de serviço, porque estes documentos expressam diretamente o que é permitido e o que é proibido aos utilizadores de uma dada plataforma, efetivamente manifestando o alcance de atuação da empresa detentora.

Além disso, termos de serviço também apontam para a questão da opacidade “platafórmica”. Para estudar tais infraestruturas digitais e suas detentoras, há que se levar em consideração que, por tornarem seus produtos e algoritmos opacos, não se submetendo a auditorias externas sob a justificativa da proteção de segredos de negócios e de propriedade intelectual (Silveira, 2019), as empresas “platafórmicas” frequentemente operam sem qualquer transparência – nisto, as diretrizes de governação podem ser lidas como cartas de intenção, nos fornecendo chaves de acesso à profundidade opaca das plataformas digitais (Lemos & Pastor, 2020).

A consequente análise dos conteúdos derivados da pesquisa documental será fundamental, por sua vez, para driblar as dificuldades no que se refere à “complexidade da codificação das informações” (Souza, 2013, p. 57) – principalmente levando em consideração que plataformas estão constante transformação. Como a pesquisa desenrola-se concomitantemente à atualidade, é preciso compreender o processo de mutação constante das plataformas como elemento integrante do desafio de pesquisa (d’Andréa, 2020).

Assim, no próximo tópico, examinaremos mais aproximadamente três acontecimentos: o caso “zoombombing” e o escândalo de vazamento de dados Zoom-Meta, ocorridos entre março e abril de 2020; a polémica referente à suspensão da conta de ativistas contrários ao governo chinês, em junho do mesmo ano; e o caso de censura à ativista palestina Leila Khaled e às videoconferências destinadas a discutir liberdade de expressão, em setembro e outubro de 2020.

4. Resultados e discussão

Para compreender o primeiro escândalo de grande porte protagonizado pela Zoom, ocorrido no início da pandemia da COVID-19, precisamos entender que dados, no contexto “platafórmico”, são informações fornecidas pelos utilizadores de um serviço digital, direta ou indiretamente, durante seu uso. Mais especificamente, de acordo com a terminologia da Zoom Video Communications, dados pessoais são “quaisquer informações de ou sobre uma pessoa identificada ou identificável, incluindo informações que a Zoom pode associar a um indivíduo” e são coletadas a partir de fontes diversas, tais como (“Declaração de Privacidade”, 2021, para. 2):

  1. · o perfil dos utilizadores, em que são armazenados dados como nome, número de telefone, dados trabalhistas e financeiros, etc.;

    · o dispositivo utilizado para acessar as videoconferências;

    · os contactos estabelecidos com outros clientes Zoom;

    · as preferências e configurações de uso da plataforma;

    · as próprias videoconferências em si e as mensagens nelas circuladas;

    · e bancos de dados de parceiras comerciais da Zoom, entre outras.

Quando se trata deste último ponto, no entanto, é necessário que a partilha de dados entre empresas seja realizada legalmente – o que não ocorreu no caso da Zoom, nos idos de março e abril de 2020, época em que a companhia enviou ilegal e automaticamente dados de seus clientes em dispositivos Apple à Meta (Morrison, 2020). Por mais que a companhia criada por Eric Yuan declarasse que não permitia tais vazamentos e que tampouco vendia dados de seus clientes, a API (interface de programação de aplicações) de login do Facebook, que permite com que clientes já cadastrados na rede social da Meta não precisem criar novas contas em outros serviços (d’Andréa, 2020), conectou os bancos de dados de ambas as empresas[4].

Dentre os dados vazados da Zoom para a Meta encontravam-se informações referentes ao momento do dia em que a plataforma de videoconferências era acessada pelos utilizadores lesados; a partir de quais modelos de dispositivos móveis o acesso foi realizado; a localização e o fuso horário do acesso; para além de números de identificação dos dispositivos (Pato, 2020). Logo, tribunais dos Estados Unidos tornaram-se palco de disputas judiciais entre a empresa – denunciada pela coleta e partilha ilegais de dados – e os clientes afetados (Morrison, 2020). Nos meses seguintes, em resposta à polémica, a Zoom Video Communication reformulou suas práticas de segurança relativas à circulação indevida de dados (Pato, 2020), inserindo o recurso de criptografia ponta-a-ponta, que protege os conteúdos das mensagens veiculadas entre os utilizadores (Grant, 2020).

Outro escândalo da época foi o do “zoombombing”, invasões maliciosas de videoconferências que exploraram falhas de segurança da plataforma para emitir mensagens homofóbicas e racistas e partilhar imagens e vídeos com apologia à pornografia e ao nazismo (Pato, 2020). Ambas as polémicas só foram judicialmente encerradas – ao menos nos Estados Unidos – em agosto de 2021, quando a Zoom Video Communications concordou em pagar 85 milhões de dólares como indemnização aos clientes lesados nos casos do “zoombombing” e da partilha indevida de dados (Stempel, 2021).

Paralelamente às revisões de suas políticas e diretrizes de segurança, a Zoom protagonizou nova controvérsia em junho de 2020, quando suspendeu a conta do ativista político Zhou Fengsuo. O cerceamento ocorreu por causa da participação de Fengsuo em uma videoconferência organizada para celebrar e homenagear os protestos da Praça da Paz Celestial, em 1989 (Rohr, 2020), isso porque, quaisquer menções de apoio a estas manifestações anti-governo na Praça Tiananmen, ocorridas há três décadas, são expressamente proibidas pela censura do Partido Comunista Chinês – não só pelo teor contrário ao governo, mas também pelo subsequente Massacre de 4 de junho, quando o exército chinês reprimiu violentamente os manifestantes. Em comunicado oficial, a Zoom confirmou a proibição do uso da plataforma por Fengsuo, justificando a medida por ser “‘obrigada a respeitar as leis dos países onde opera’ e [porque] ‘não tem poder para mudar as leis de governos que se opõem à liberdade de expressão’” (Rohr, 2020, para. 2).

A resposta da opinião pública estado-unidense foi veloz, pautada por um incisivo editorial pelo jornal The Washington Post acusando a Zoom de conivência com a repressão do governo chinês (“Zoom is complicit”, 2020), cujas demandas também obrigaram a companhia a suspender as contas de outros ativistas e cancelar outras videoconferências referentes aos protestos da Praça da Paz Celestial (Harwell & Nakashima, 2020). Ao levantar-se contra a Zoom Video Communications, este artigo do The Washington Post questiona a viabilidade de se manter uma postura favorável à liberdade de expressão simultaneamente à obediência à legislação de países, como a China, que a cerceiam – é interessante perceber, por outro lado, como o jornal, propriedade da Amazon, elogia empresas como Meta, Google e Apple por não se renderam às pressões chinesas (Furtado, 2021a).

O último caso que exploraremos é o da censura à ativista palestina Leila Khaled, integrante da Frente Popular para a Libertação da Palestina e que ganhou reconhecimento global ao se tornar a primeira mulher a sequestrar um avião, durante a década de 1960. Em setembro de 2020, Khaled participaria de um debate académico acerca de questões de género e narrativas de resistência via Zoom, organizado pela Universidade Estadual de São Francisco, Califórnia. O evento imediatamente gerou respostas contrárias de grupos pró-Israel, histórico inimigo geopolítico da Palestina. Pressionada, a Zoom Video Communications suspendeu a realização da videoconferência (Speri & Biddle, 2020), cancelando, no mês seguinte, outras videoconferências orientadas à discussão dos atos de censura perpetrados pela própria companhia (Lytvynenko, 2020).

Como meio de justificar a moderação acerca do caso Khaled, a empresa invocou uma secção de seus termos de serviço que proíbe expressamente o uso da aplicação de videoconferências caso o mesmo viole “leis e regulamentos antispam, de controle de exportação, privacidade e antiterrorismo” (“Termos de Serviço”, 2021, para. 12). Entretanto, nenhuma explicação mais aprofundada sobre quais leis antiterrorismo o evento teria teoricamente violado foi fornecida, o que obrigou o porta-voz da Zoom a esclarecer que a companhia se reserva ao direito – em suas diretrizes de governação – de impedir o uso de seus serviços sem prover justificativas (Speri & Biddle, 2020). Mais especificamente, o porta-voz Andy Duberstein invocou a seguinte passagem contratual dos termos da Zoom, que determina que a companhia

pode investigar quaisquer reivindicações e violações que cheguem ao seu conhecimento e pode tomar quaisquer medidas que julgar apropriadas, incluindo, entre outras, emissão de avisos, remoção de conteúdo ou encerramento de contas e/ou perfis de usuário. Em nenhuma circunstância e de forma alguma a Zoom será responsável por qualquer dado ou conteúdo exibido durante a utilização dos Serviços, incluindo, entre outros, quaisquer erros ou omissões em tais dados ou conteúdo, ou perda ou dano de qualquer natureza incorrido como resultado do uso, do acesso ou da negação de acesso a dado ou conteúdo. (“Termos de Serviço”, 2021, para. 14)

Resgatando a discussão acerca dos modos como a secção 230 do código de telecomunicações dos Estados Unidos ampara a livre atuação das detentoras de plataformas, verificaremos que ao mesmo tempo em que companhias como a Zoom podem banir seus clientes, toda e qualquer falha decorrente do uso da aplicação, ou quaisquer problemas encontrados pelos consumidores, são de inteira responsabilidade e ónus dos mesmos. Conforme sintetizado por Faiza Patel, codiretora do Brennan Center for Justice, instituição voltada à proteção da liberdade de expressão e da democracia, empresas privadas como a Zoom “frequentemente utilizam seus julgamentos para seletivamente bloquear vozes. Termos de serviço são utilizados para apresentar decisões de negócios unilaterais como nada mais do que a aplicação de regras” (Speri & Biddle, 2020, para. 12).

Novamente sob pressão, mas agora de grupos pró-liberdade de expressão, a Zoom reconheceu oficialmente, em abril de 2021, a necessidade de proteger o discurso académico, declarando que só agiria novamente como no caso Khaled, se a empresa determinar que as reuniões virtuais oferecem um risco jurídico ou legal para a Zoom em caso de não ação; oferecem uma ameaça física imediata para a segurança de quaisquer pessoas; ou não possuem relação com operações académicas (“On Academic Freedom”, 2021). Contudo, tal qual evidenciado anteriormente pelo próprio caso Khaled e pela revisão bibliográfica dos estudos de plataforma, o que é institucionalmente expresso não só é frequentemente opaco e de difícil descodificação, como também vai de encontro diretamente às ações tomadas. É neste contexto que propomos o conceito de controvérsias discursivas – momentos de disparidade entre o que é discursado a nível institucional em termos de abertura e neutralidade e o que é materializado pelos termos de serviço e práticas de governação; momentos de dissonância entre o dito e o não-dito.

Para melhor ilustrar o caráter discursivo destas controvérsias, evidenciando como as declarações da Zoom acerca da proteção da liberdade de expressão soam vazias à medida que a companhia cede à pressão do Partido Comunista Chinês ou de grupos pró-Israel, analisaremos a seguir as cláusulas dos termos de serviço da Zoom Video Communications. Em 20 itens, o contrato firmado pela companhia sediada no Vale do Silício com seus clientes, firma uma posição igualmente neutra e proposicional para a Zoom, apresentando a big tech como uma simples intermediária – imagem esta que, conforme vimos, não faz jus às maneiras como as interações que sustenta são modeladas (Gillespie, 2010).

Nas secções em si, a Zoom determina que seus “usuários finais” comprovem ter no mínimo 16 anos – excetuando casos específicos, da esfera educacional – e se reserva ao direito de modificar a prestação de seus serviços sem aviso prévio, inclusive suspendendo-os quando assim determinar necessário. A Zoom não se responsabiliza por qualquer dano sofrido pelos conteúdos circulados em suas videoconferências, em termos de transmissão, processamento e armazenamento, mas especifica precisamente que os “usuários finais” são os únicos responsáveis pelos conteúdos que emitem, alertando contra a violação de leis, incluindo a de direitos de autoria; contra tentativas de desarticulação ou apropriação do código-fonte da plataforma; contra usos conscientemente negligentes ou maliciosos; contra comunicação de “qualquer mensagem ou material que seja hostil, difamatório, ameaçador, obsceno ou indecente”; contra a partilha de vírus que possam perturbar o sistema; e contra outros atos, como violações de privacidade e terrorismo (“Termos de Serviço”, 2021, para. 12).

Em outras palavras, o documento demonstra como a Zoom estabelece privilégios para si ao não se responsabilizar por danos aos conteúdos circulados em suas videoconferências; não garantir que o uso dos serviços trará os resultados esperados; mas especificar que “embora a Zoom não seja responsável por conteúdo algum, a Zoom poderá excluir qualquer conteúdo, a qualquer momento, sem aviso prévio se ela perceber que esse conteúdo viola qualquer disposição deste contrato ou qualquer lei” (“Termos de Serviço”, 2021, para. 10). Dito de outro modo, tal qual ocorrido nos casos de censura a Zhou Fengsuo e Leila Khaled, se a Zoom Video Communications definir que a natureza dos conteúdos veiculados ferem suas regras, surge o palpável risco do cerceamento à partilha de tais discursos e o consequente cancelamento de contas de determinados utilizadores – sem precisar justificar suas decisões, é claro.

Na prática, ao responsabilizar por completo seus “usuários finais”, ao mesmo tempo em que se reserva o direito de interferência sobre quaisquer usos da plataforma, a detentora da plataforma de videoconferências em questão configura, modela e exercita um posicionamento discursivo de flexibilidade e neutralidade (Gillespie, 2010, p. 350), muito embora o mesmo seja insustentável. A este respeito, também deve-se ressaltar as cláusulas que manifestam os direcionamentos técnico-políticos da Zoom, que não permite a utilização de sua plataforma em países cujas relações comerciais e políticas com os Estados Unidos atravessam restrições – tais como Cuba, Irã, Coreia do Norte e Síria, para além do território da Crimeia, na Ucrânia; e até mesmo regula que tipos de procedimentos legais podem ser adotados ou não por seus clientes, vetando a possibilidade dos consumidores de processarem a empresa através de ações judiciais conjuntas (“Termos de Serviço”, 2021). Com a invasão da Ucrânia pela Rússia, a Zoom adicionou as regiões ucranianas de Luhans e Donetsk à lista de territórios banidos (“Restricted countries”, 2022).

Ou seja, se resgatarmos os princípios expostos pela Zoom em seu kit de media (“Kit de mídia”, 2021) para contrastá-los não só ao exercício discursivo proposto pelos termos de serviço, como também às práticas de moderação da companhia, veremos controvérsias discursivas em plena ação. Se, por um lado, a companhia promete auxiliar seus clientes a expressar suas ideias, o que vimos ocorrer, por outro, distancia-se por completo do compromisso “firmado” institucionalmente, através da censura das vozes de ativistas ou da proibição da tomada de certas decisões – tal qual o impedimento geopolítico do uso dos serviços descrito acima ou o cerceamento da liberdade jurídica dos utilizadores estado-unidenses da plataforma. Além disso, ao passo em que a Zoom expressa, como uma de suas missões, contribuir para a conexão humana, a divergência a nível prático é processada quando a companhia ativamente partilha dados pessoais de seus utilizadores com outras plataformas sem aviso prévio ou bases jurídicas; e quando permite que invasores de videoconferências partilhem mensagens de ódio e imagens obscenas. Por fim, no âmbito das controvérsias discursivas, torna-se difícil acreditar que a construção do futuro prometido pela Zoom em conjunto aos seus clientes seja balizado pela imaginação dos mesmos e não pelos desígnios da companhia.

Em suma, defendemos que o conceito de controvérsias discursivas dilui parte da opacidade das diretrizes de governação de detentoras de plataformas, denunciando como a falta de transparência de tais documentos leva a restrições significativas à liberdade de expressão, ocultadas pelas entrelinhas contratuais. As discrepâncias entre as posturas discursivas e as práticas de governação das detentoras de plataformas, em suma, influenciam “o exercício de vários direitos humanos, incluindo o direito à liberdade de expressão, à privacidade e à justiça jurídica”, complicando a compreensão acerca dos modos como nossos direitos são afetados (Venturini et al., 2016, p. 107). E é claro que se, após todo este percurso, o leitor concluir que não está disposto a arcar com os riscos, a solução é “simples” – a despeito de sua unilateralidade flagrante: deixar de usar os serviços desejados, como a própria Zoom determina (“Termos de Serviço”, 2021).

Conclusões

À medida que um futuro próximo sem a presença progressivamente massiva de plataformas digitais aparenta ser impossível (Punathambekar & Mohan, 2019), é ainda mais fundamental buscar a desarticulação do posicionamento de neutralidade e objetividade em prol do social e da conexão humana adotado pelas detentoras de plataformas. É isto que objetivamos demonstrar durante o decorrer do presente estudo, apontando, através do conceito de controvérsias discursivas, uma parcela da dimensão técnico-político inerente à estrutura de companhias como a Zoom.

Para tal, percorremos uma concisa revisão bibliográfica dos estudos de plataforma, eminentemente orientada à leitura das teorias acerca das diretrizes de governação. Com isto, nosso intuito central foi duplo. Em primeiro lugar, tencionamos estabelecer bases teóricas sobre as quais pudéssemos trabalhar na sequência do estudo, durante a análise dos documentos técnicos da plataforma Zoom e do noticiário envolvendo os escândalos da companhia. Em seguida, buscamos indicar que, mais do que facilitadora desinteressada das interações humanas ou mera ciência aplicada, a tecnologia digital da atualidade é “um emaranhado confuso de geopolítica, finança global, consumismo desenfreado e acelerada apropriação corporativa dos nossos relacionamentos mais íntimos” (Morozov, 2018). Apontamos, ainda, como não desarticular a imagem convenientemente talhada pelas detentoras de plataformas para si mesmas e não submetê-las a regulações mais amplas e rigorosas pode acarretar “implicações legais e políticas significantes” (Napoli & Caplan, 2018, p.155).

Em seguida, examinando diretamente as consequências materiais dos termos de serviço por intermédio da análise de três polémicas centradas ao redor e protagonizadas pela plataforma Zoom, avançamos a proposição direta do conceito de controvérsias discursivas. Esperamos que a leitura dos 20 itens dos termos de serviço da Zoom Video Communications à luz das disparidades entre postura e prática adotadas pela companhia não só tenha escancarado divergências e posicionamentos técnico-políticos, como também o fato de que é preciso lutar continuamente pela liberdade de expressão como fundamento indispensável ao exercício democrático – incluindo, aí, a liberdade de visualização de conteúdos, de modo que os indivíduos possuam “o direito de ver, ler e ouvir conteúdos políticos sem que sejam filtrados”, protegendo o debate público dos critérios e parâmetros obscuros das plataformas (Silveira, 2019, capítulo 4). Nisto, as controvérsias discursivas, quando escancaradas, reforçam nossas próprias responsabilidades: enquanto cidadãos, precisamos operar como aqueles que vigiam os vigilantes – as detentoras de plataformas, sobretudo na era da esfera pública digital (Gillespie, 2018, pp. 211–212).

No caso mais específico da plataforma Zoom, bem como de outras infraestruturas digitais estado-unidense, esperamos que o termo operativo aqui proposto nos auxilie a adquirir uma distância produtiva dos determinismos tecnológicos utópico e anti-utópico que rondam o território da cultura digital contemporânea (Lemos, 2015). Acreditamos que o conceito de controvérsias discursivas pode abrir searas interessantes, por exemplo, para estudar uma das atualizações mais recentes das ações da Zoom: em dezembro de 2021, a companhia decidiu integrar o Fórum Global da Internet contra o Terrorismo (ou The Global Internet Forum to Counter Terrorism, em inglês), um grupo formado por gigantes como Meta, Google, Twitter, Microsoft e Amazon cujo objetivo é fomentar a troca de informações entre os membros para desenvolver estratégias de combate ao terrorismo e ao extremismo em suas plataformas (Culliford, 2021).

Considerando que a troca de informações entre os bancos de dados das plataformas é um elemento fulcral para o estabelecimento de um ecossistema orientado pela circulação perene de informações (van Dijck et al., 2018, p. 35), a entrada da Zoom Video Communications no referido Fórum Global reforça, por um lado, a economia baseada na análise, mineração e tratamento de dados (Silveira, 2019; d’Andréa, 2020) e, consequentemente, o poderio das plataformas na contemporaneidade. Por outro, deve lançar, à luz das controvérsias discursivas, um sinal de alerta, tendo em vista as polémicas investigadas no decorrer deste estudo, assim como as sempre presentes discrepâncias entre o que se diz e o que se cumpre no ambiente “platafórmico”.

Pois, no terreno das controvérsias discursivas, dar o dito pelo não dito, como reconta o tradicional ditado, não deve significar a invalidez do que foi expresso, mas sim a evidenciação da disparidade entre o enunciado e aquilo que foi posto em prática – não só em seus efeitos materiais imediatos, como censura à liberdade de expressão e ameaças à privacidade e à democracia, mas também no que se refere ao reforço do imaginário “platafórmico” que hoje nos modela e reconfigura.

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Notas

[1] No início da pandemia, em março de 2020, a companhia conectou 300 milhões de pessoas por dia, 30 vezes mais em comparação aos números de 2019 (“Covid impact”, 2021).
[2] Não é nossa pretensão analisar o referido conflito bélico, nem tampouco observar o emprego de tecnologias na guerra. Os exemplos são somente um ponto de partida.
[3] Vale ressaltar que a fotografia “The Terror of war” era uma das referências de manuais desenvolvidos pela Meta para guiar a ação de seus moderadores humanos; nestes documentos, o registo era destacado como exemplo de conteúdo a ser excluído (Gillespie, 2018, p. 4).
[4] As APIs são recursos técnicos fulcrais para o funcionamento do ecossistema das plataformas, oferecendo “a terceiros acesso controlado aos dados coletados, dando a eles vislumbres detalhados sobre métricas e comportamentos de uso – informações sobre as quais podem ser construídas novas aplicações ou plataformas (van Dijck et al., 2018, p. 9).

Autor notes

Renato Furtado é Doutorando e Mestre em comunicação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro e Bacharel em radialismo pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. É jornalista e crítico de cinema formado pelo Festival Internacional de Cinema de Berlim, tendo trabalhado durante quatro anos na redação do AdoroCinema, maior site sobre filmes e séries da América Latina. Como pesquisador académico, investiga temas relacionados às materialidades da comunicação; geopolítica e infraestruturas da comunicação; plataformas digitais e processos de plataformização; teatro; e cinema.


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